Topo

A misteriosa rede de restaurantes que a Coreia do Norte opera no exterior

As garçonetes dos restaurantes do governo da Coreia do Norte são formadas na Escola Estatal de Arte de Pyongyang  - Getty Images
As garçonetes dos restaurantes do governo da Coreia do Norte são formadas na Escola Estatal de Arte de Pyongyang Imagem: Getty Images

29/05/2016 11h41

Há uma rede de restaurantes única no mundo: ela é propriedade do governo da Coreia do Norte e é possível encontrar filiais apenas fora do território norte-coreano.

E o que diferencia ainda mais esta rede de restaurantes não é a comida, são as garçonetes.

"Logo depois de servir uma mesa, as jovens sobem em um palco para mostrar suas virtudes musicais, executando desde trechos de ópera até músicas no violino", disse o jornalista da BBC Ed Butler, que visitou um destes restaurantes.

"Viajei muito pelo mundo, mas devo dizer que nunca tinha visto um restaurante assim."

São cerca de 130 restaurantes que estão causando polêmica na imprensa e entre viajantes mundo afora.

Alguns afirmam que as autoridades norte-coreanas usam estes locais para obter divisas. Outros falam que, na verdade, a rede é uma fachada para negócios ilegais em larga escala.

A especulação aumentou nesta semana com informações de que as funcionárias de um destes restaurantes localizados na China desertaram e agora querem asilo na Coreia do Sul.

Aeromoças

Os restaurantes norte-coreanos estão espalhados por pelo menos 12 países, principalmente na Ásia, apesar de a grande maioria estar na China.

E foi em uma das filiais chinesas que Celia Hatton, editora do Serviço Mundial da BBC para a Ásia e ex-correspondente em Pequim, teve o primeiro contato com um destes restaurantes.

"Quando você entra, vê que ele está todo decorado com imagens de lugares e paisagens famosas da Coreia do Norte", disse Hatton à BBC Mundo.

"As garçonetes são jovens bonitas, com maquiagem perfeita, que parecem aeromoças de uma companhia aérea de luxo. E toda hora elas sobem em um palco para dançar, cantar, tocar violão ou fazer algum outro tipo espetáculo. Tudo parece muito diferente e, na verdade, é."

Hatton tentou conversar com uma das garçonetes mas "elas falam apenas o estritamente necessário".

Uma destas garçonetes em um restaurante do Camboja disse ao jornalista da BBC Ed Butler que as funcionárias trabalham no restaurante por um período de três anos antes de voltar para a Coreia do Norte.

Um médico da Coreia do Sul, que tratou uma das funcionárias da rede, disse a Butler que elas "não têm permissão para sair do local de trabalho, onde elas também moram".

"E todas são formadas na Escola Estatal de Artes da Coreia do Norte", acrescentou.

Alguns relatos afirmam que estas jovens são de famílias da "elite norte-coreana", que se destacam por sua "grande lealdade ao regime".

"As garçonetes são vigiadas dia e noite. Elas mesmas controlam umas às outras, o chef as monitora e alguém observa o chef", afirmou Butler.

"Todas têm familiares no território norte-coreano e alguns especialistas afirmam que se elas tentarem fugir, suas famílias poderiam ter problemas", acrescentou.

Lucros

Os restaurantes geram cerca de US$ 10 milhões por ano, segundo estimativas de especialistas sul-coreanos citados pela agência de notícias EFE.

Kim Myung Ho, desertor norte-coreano que administrava um restaurante destes na China, disse que eles eram obrigados a prestar contas para as autoridades na capital, Pyongyang, e enviar entre US$ 10 mil e US$ 30 mil por ano a eles.

Algumas pessoas acreditam que a rede de restaurantes é um mecanismo usado pelo governo de Kim Jong Um para obter divisas.

O jornalista sueco Bertil Lintner, autor do livro Grande Líder, Querido Líder: Desmistificando a Coreia do Norte no governo do Clã Kim, afirmou que na década de 1990 a economia do país sofreu um golpe muito duro quando a China e a ex-União Soviética começaram a exigir que Pyongyang pagasse em dinheiro por algumas de suas importações ao invés de pagar com a troca de bens.

O governo da Coreia do Norte então tentou gerar fundos com negócios em outros países e, por isso, "os restaurantes são usados para ganhar dinheiro para o governo de Pyongyang. Também se suspeita que sejam usados para lavar dinheiro de atividades comerciais nada agradáveis", disse Lintner em uma entrevista à imprensa americana.

O jornalista sueco relata versões de fatos que afirmam que os restaurantes são controlados diretamente pela misteriosa Bureau 39, uma agência secreta do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte acusada de lavar dinheiro da venda de armas e da produção de drogas.

"Estes restaurantes e outros negócios onde se gerencia dinheiro são comumente usados para ocultar outras contas", afirmou Lintner.

Para Celia Hatton é muito difícil saber o que realmente está por trás da rede norte-coreana.

"Como tudo relacionado à Coreia do Norte há toda uma variedade de teorias. Em um extremo poderia se dizer que os restaurantes são um mecanismo para mostrar a cultura norte-coreana e melhorar a imagem do país no exterior", disse Hatton à BBC Mundo.

"No meio do espectro podemos falar de uma estratégia para obter moeda estrangeira. E, no outro extremo, estão os que falam de garçonetes espiãs ou lavagem de dinheiro."

Desertores

As recentes deserções de garçonetes norte-coreanas não revelaram o mistério que cercam estes restaurantes, mas levantaram a polêmica.

O caso informado nesta terça-feira, de funcionárias que fugiram de um restaurante na China, é o segundo em menos de dois meses de acordo com as autoridades da Coreia do Sul.

Em 13 de abril, funcionários de outro restaurante em território chinês, um gerente e 12 garçonetes, fugiram para a Coreia do Sul.

Pyongyang acusou as autoridades sul-coreanas de ter agido junto com o gerente para "sequestrar" as jovens.

Há a estimativa de que cerca de 30 mil norte-coreanos tenham fugido para a Coreia do Sul desde o fim da Guerra da Coreia em 1953, segundo a agência de notícias Associated Press.

Mas a fuga das garçonetes em abril foi a maior deserção em grupo já informada.

Isolamento

de 12 garçonetes e um gerente em abril, o regime de Kim Jong-un acusou o governo da Coreia do Sul de 'sequestro'

O crescente isolamento da Coreia do Norte, devido aos testes de mísseis realizados e a imposição de novas sanções em março por parte da ONU, contribuíram para uma queda na popularidade dos restaurantes norte-coreanos no exterior.

Apesar de as sanções não falarem diretamente sobre esta rede, o governo da Coreia do Sul, por exemplo, já pediu que seus cidadãos evitem visitas aos restaurantes.

No entanto, eles continuam funcionando.

E, em cerca de 130 restaurantes espalhados pelo mundo, ainda é possível desfrutar dos pratos típicos coreanos como o kimchi - uma conserva picante em salmoura e fermentada que pode ser feita com acelga, ou com nabo, rabanete e até pepino - ou então a sopa com carne de cachorro.

Além da comida, também é possível apreciar o virtuosismo musical das jovens garçonetes, formadas na Escola de Artes de um dos países mais isolados do mundo.