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Crianças enfrentam frio, piolhos e sujeira em campo de detenção de imigrantes nos EUA

Hilary Andersson e Anne Laurent - BBC News, Texas

27/05/2021 19h04

Os Estados Unidos possuem um vasto sistema de centros de detenção espalhados por todo o país, que abrigam mais de 20 mil crianças migrantes. Em uma investigação especial, a BBC descobriu denúncias de baixas temperaturas, doenças, negligência, piolhos e sujeira, por meio de uma série de entrevistas com crianças e funcionários.

Era meia-noite no Rio Grande, o imponente rio na fronteira entre o México e o Estado americano do Texas. As luzes começaram a piscar no lado mexicano. Vozes podiam ser ouvidas na escuridão. Vultos surgiram, entraram em uma pequena jangada e começaram a atravessar o rio.

Quando a balsa apareceu do lado americano, os rostos dos migrantes se tornaram visíveis. Mais da metade eram crianças. Durante março e abril, mais de 36 mil crianças entraram nos Estados Unidos desacompanhadas de um adulto. Um recorde nos últimos anos.

Muitas crianças que viajam sozinhas partem nesta jornada na esperança de se reunir com um dos pais que já está em território americano. Mais de 80% delas já têm algum familiar no país, afirma o governo dos Estados Unidos.

O presidente Joe Biden abriu a fronteira para crianças desacompanhadas que buscam asilo, relaxando um pouco a política do ex-presidente Donald Trump de recusar migrantes devido à covid-19.

As crianças subiram as margens do rio exaustas. Dois primos deram as mãos. Um dos jovens, Jordy, de 17 anos, contou que havia fugido da Guatemala porque tinha medo da violência das gangues que operam lá. Mas esta noite ele estava assustado com o que esperava por ele nos centros de detenção de migrantes nos Estados Unidos. Ele tinha ouvido algumas histórias a respeito.

"Vão nos colocar em uma 'caixa de gelo' e nos fazer perguntas", afirmou.

As chamadas "caixas de gelo", famosas entre os migrantes, são salas extremamente frias ou cubículos nas instalações de processamento de migrantes da Patrulha de Fronteira dos Estados Unidos.

Jordy foi orientado a entrar numa fila com outras crianças. Os guardas do Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) estavam recolhendo os cadarços e cintos, procedimento geralmente reservado a presos para evitar que tentem suicídio.

Jordy e as outras crianças foram então levados em uma viagem de ônibus noite adentro. Eles estavam prestes a se juntar a mais de 20 mil crianças migrantes hoje em regime de detenção nos Estados Unidos, mantidas em uma série de centros em todo o país, dos quais pelo menos 13 são novos.

No fim de março, o CBP divulgou imagens perturbadoras das condições precárias dentro de uma instalação específica em Donna, no Texas ? formada por uma série de tendas brancas. A unidade havia sido projetada para acomodar 250 pessoas, mas chegou a abrigar mais de 4 mil no pico de ocupação.

Os jornalistas não foram autorizados a falar com as crianças lá dentro. Sendo assim, rastreamos as crianças que foram liberadas para descobrir as condições nos centros de detenção americanos.

Ariany, de dez anos, que atravessou a fronteira para os Estados Unidos sozinha, passou 22 dias detida nesta primavera, a maior parte do tempo no acampamento de Donna. Ela estava espremida em um cubículo de plástico ? assim como várias outras crianças, de bebês a adolescentes ?, enrolada em um cobertor de emergência prateado.

"Estávamos com muito frio", diz ela. "Não tínhamos onde dormir, então dividimos colchonetes. Éramos cinco meninas em dois colchonetes."

Ariany conseguiu finalmente se reunir com a mãe, Sonia, no fim de março.

Ela havia passado as informações de contato da mãe para as autoridades americanas que foram capazes de localizá-la. Sonia fugiu de Honduras com o outro filho há seis anos devido à violência de gangues, deixando para trás Ariany ? que era nova demais na época para fazer a travessia ? com sua irmã mais velha.

Cindy, de 16 anos, também mantida em Donna nesta primavera, conta que havia 80 meninas em seu cubículo, e que ela e a maioria das crianças ficavam molhadas sob os cobertores devido ao gotejamento de canos.

"Todos nós acordamos molhados", revela.

"Dormíamos de lado, todos abraçados, por isso ficávamos aquecidos."

'Algumas desmaiaram'

Várias crianças, incluindo Ariany e Paola, uma jovem de 16 anos também liberada do centro de Donna, contaram à BBC que recebiam comida que tinha vencido, estava estragada ou não havia sido cozida adequadamente.

E disseram que muitas crianças adoeciam.

"Algumas meninas desmaiaram", relata Jennifer, que tinha 17 anos na época de sua detenção.

Algumas meninas no centro de Donna podiam tomar banho uma vez por semana, mas outras relataram que não tomaram banho por várias semanas seguidas. Paola sofreu com a sujeira.

"Comecei a sentir minha cabeça coçando e percebi que não era normal. Eles examinaram minha cabeça e falaram que eu estava com piolho."

Com as crianças comendo e dormindo num espaço apertado, os cubículos rapidamente ganhavam um cheiro desagradável. Ariany disse que os guardas ameaçavam as crianças se elas não mantivessem seus aposentos limpos.

"Às vezes, se estivéssemos fazendo muita bagunça, eles diziam que iriam nos punir, nos deixando lá por mais dias", revela.

À noite, de acordo com o depoimento das crianças, as tendas ficavam repletas de sons de choro.

"Todos nós chorávamos, dos mais novos aos mais velhos. Havia bebês de dois anos, ou um ano e meio, chorando porque queriam a mãe", diz Cindy.

Paola afirma que tentou ajudar os mais novos, mas também temia que ela mesma nunca mais veria a mãe novamente.

"Eles choravam na minha frente, e eu só tentava confortá-los dizendo que um dia sairíamos dali ? embora, às vezes, dentro de mim eu tivesse dúvidas, porque [os funcionários] não pediam o telefone da minha mãe, o endereço dela, e eu também me sentia mal", diz ela.

Voos transportando milhares de crianças

Um dia, Cindy começou a passar mal. Ela testou positivo para covid-19, assim como um número assustador de crianças migrantes em regime de detenção. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, na sigla em inglês) registrou mais de 3 mil casos da doença entre crianças migrantes somente no Texas desde o ano passado. Não se sabe qual é o número total de casos nos novos abrigos de emergência em todo o país.

Por fim, Cindy, sem saber para onde estava indo, foi transferida com 40 outras crianças que testaram positivo para covid-19, primeiramente de ônibus, depois de avião, até San Diego, na Califórnia, a 2.400 km de distância. Elas foram levadas para um novo abrigo ? um centro de convenções com capacidade para quase 1,5 mil crianças ? com fileiras e mais fileiras de camas de campanha frágeis.

Ela diz que foi mantida longe das crianças saudáveis, em uma seção repleta de crianças com covid-19. Segundo ela, as condições eram melhores do que em Donna, mas ainda precisou esperar alguns dias até conseguir tomar banho.

Quem são as crianças?

- Perseguição, violência de gangues, crime organizado, perdas em decorrência de desastres naturais (incluindo dois furacões na América Central em 2020) e pobreza estão fazendo com que os pais enviem seus filhos para buscar refúgio nos Estados Unidos. Os migrantes são vulneráveis ??à exploração e ao abuso sexual ao longo do caminho.

- A maioria são adolescentes da Guatemala, Honduras e El Salvador, embora algumas tenham apenas seis ou sete anos.

- Elas são enviadas pelos familiares sozinhas ou acompanhadas por contrabandistas de migrantes que cobram milhares de dólares, mas relatos sugerem que algumas famílias acompanham as crianças até a fronteira e depois as enviam sozinhas para aumentar suas chances de entrar nos Estados Unidos.

- A maioria já tem familiares em território americano ? em cerca de metade dos casos, um dos pais.

- Apenas 4,3% dos menores desacompanhados que buscam asilo foram deportados desde 2014.

Todos os dias, voos partem de cidades na fronteira dos Estados Unidos carregados de crianças.

"Em alguns dias, estimamos que centenas de crianças são transportadas por todo o país nesses voos", diz Thomas Cartwright, da Witness at the Border, organização que registra os voos.

Nas últimas semanas, as autoridades retiraram cerca de 3 mil crianças das instalações da Patrulha de Fronteira em Donna, transportando várias delas para unidades de uma nova rede de centros de detenção infantil em todo o país administrados pelo HHS, incluindo aquele para o qual Cindy foi transferida em San Diego.

Há pelo menos 13 dessas instalações, conhecidas como abrigos de emergência, em bases militares, centros de convenções e arenas nas principais cidades dos Estados Unidos. Trata-se de uma nova parte de uma rede de 200 centros de detenção para crianças migrantes espalhados por 22 estados.

Isso significa que a unidade de Donna está muito menos lotada agora, com o acampamento abrigando cerca de 300 crianças. A instalação está sendo expandida, à medida que o fluxo de migrantes pela fronteira continua.

Um dos novos abrigos de emergência é o centro de conferências Kay Bailey Hutchison no centro de Dallas, que tem 2.270 camas de campanha montadas em um enorme salão, e chegou a manter centenas de meninos adolescentes, de 13 a 17 anos, em seu pico de ocupação.

Os funcionários que trabalham no abrigo de Dallas dizem que tiveram que assinar acordos de confidencialidade especificando que não podem falar sobre o que acontece lá dentro.

Crianças 'contemplando o suicídio'

Mas alguns concordaram em conversar com a gente sob condição de anonimato.

"As crianças sempre reclamam de não ter o suficiente, de não comer o suficiente", diz um funcionário.

Ele também contou que o centro de convenções era frio, que cada um dos meninos tinha um cobertor fino, e que eles eram obrigados a ficar em suas camas de campanha quase o dia todo.

"Há meninos que estão lá há 45 dias direto, sem luz do sol, sem recreação do lado de fora, sem ar fresco, sem nada", revela.

Segundo ele, os meninos só tinham 30 minutos de recreação duas vezes por semana em uma área coberta ? e muitos deles já estavam no centro de convenções há semanas.

"Estão todos deprimidos. Ouvi outro dia que vários estavam pensavam em suicídio por causa das condições aqui."

"Eles estão sendo tratados como prisioneiros, como presidiários", acrescenta.

"É assustador que este centro não seja capaz de atender aos padrões mínimos de cuidado com menores desacompanhados."

Em resposta às denúncias de negligência contra crianças migrantes nos novos centros de detenção, o HHS declarou: "É disponibilizado para as crianças um ambiente seguro e saudável com acesso a alimentos nutritivos, roupas limpas, camas confortáveis, educação, atividades recreativas e serviços médicos."

"O Dallas EIS (abrigo de emergência) está fornecendo os padrões de atendimento exigidos", acrescenta o comunicado.

"Todo o governo está trabalhando em conjunto para reduzir o tempo que as crianças ficam sob custódia federal, tornando as unificações nossa principal prioridade", diz ainda o texto, destacando que o número de crianças sob os cuidados do HHS mais que dobrou.

As crianças são liberadas regularmente, mas para várias delas é um processo muito lento. O tempo médio que passam nos centros de detenção é de um mês.

O maior abrigo de emergência é uma instalação com tendas na base militar de Fort Bliss em El Paso, no Texas, que mantém mais de 4,5 mil crianças em regime de detenção no deserto escaldante. Tem capacidade para mais de 10 mil.

Uma fonte lá de dentro contou à BBC que algumas das tendas contêm de 500 a 800 meninas e meninos, que dormem em longas fileiras de beliches. Segundo ela, centenas de crianças estão isoladas com covid-19, e agora há tendas no local destinadas àquelas que estão com sarna e piolho, surtos que também estão ocorrendo.

Fontes dizem que as condições de vida são insalubres e que houve pelo menos uma denúncia de abuso sexual na tenda das meninas. Um documento oficial indica que crianças menores de seis anos podem ser enviadas para Fort Bliss.

O HHS não respondeu a solicitação da BBC para comentar estas acusações.

Agonia na fronteira

Amy Cohen, uma psiquiatra baseada do outro lado do país, em Los Angeles, tem mais de 30 anos de experiência trabalhando com crianças traumatizadas. Ela afirma que as supostas condições nos campos podem ser extremamente prejudiciais para quem está lá dentro.

"Mesmo depois de semanas nessas condições, muitas crianças correm mais risco de desenvolver doenças psiquiátricas graves no decorrer da vida, com maior risco de abuso de substâncias e maior risco de suicídio", diz ela.

Cohen explica que essas crianças migrantes seriam ainda mais vulneráveis ??porque muitas foram separadas de um membro da família não parental, ou de alguém em quem confiavam como membro da família, na fronteira.

"Se uma criança chega com alguém que não é seu pai ou mãe biológico, mesmo que seja seu pai ou mãe psicológico, elas são invariavelmente tiradas desse indivíduo, arrancadas de seus colos, tiradas de seus braços e chamadas de menor desacompanhado."

Ela acrescenta que os pais foram forçados a tomar a decisão de se separar dos filhos, porque as famílias que são rejeitadas frequentemente mandam seus filhos de volta pela fronteira sozinhos, em vez de arriscar seu bem-estar em cidades perigosas ao longo da fronteira mexicana. Lá, diz ela, as crianças são vulneráveis ??a estupro, tráfico e agressão.

"Então, esses pais, quando descobrem que não podem proteger seus filhos, acabam se sentindo forçados a mandá-los sozinhos para o outro lado do rio, a fim de preservar suas vidas."

Cohen afirma que embora as crianças não estivessem mais sendo fisicamente tiradas de seus pais biológicos por guardas de fronteira ? como aconteceu por um tempo durante a chamada "política de tolerância zero" do ex-presidente Trump ?, o processo de separação familiar era profundamente prejudicial em termos psicológicos.

"Entrevistei crianças que foram separadas dos pais sob a política de 'tolerância zero' do governo Trump... e entrevistei muitas crianças que agora foram tiradas de tias, tios e irmãos... Estou vendo exatamente o mesmo trauma nessas crianças agora, como vimos naquelas crianças na época."

O CBP disse à BBC que, de acordo com a lei federal, qualquer criança que chega sem um dos pais ou responsável legal é considerada desacompanhada e deve ser transferida para o HHS sem o parente adulto.

Como Biden difere de Trump na questão da migração

- Ele suspendeu o programa de Protocolos de Proteção ao Migrante, também conhecido como "Permanecer no México", que exigia que os migrantes esperassem no México enquanto seus casos eram julgados pelos tribunais de migração dos EUA. Aos poucos, tem permitido os já inscritos no programa a aguardar nos Estados Unidos enquanto seus casos são julgados, ao mesmo tempo em que ressalta que a fronteira permanece fechada para os demais.

- Criou uma força-tarefa para reunir famílias que foram divididas durante a chamada política de "tolerância zero" de Trump.

- Interrompeu a construção do muro na fronteira mexicana e propôs um novo projeto de lei de migração que abriria caminho para dar cidadania a migrantes indocumentados que já vivem nos EUA.

A ordem de saúde pública em decorrência da pandemia significa que um grande número de adultos e famílias ainda estão sendo barrados na fronteira, e Biden exortou os migrantes a não embarcarem na arriscada jornada.

Mas o governo Biden permitiu que crianças desacompanhadas com menos de 18 anos e, mais recentemente, um pequeno número de famílias com crianças pequenas, entrassem em território americano enquanto suas solicitações eram processadas.

Além disso, foi anunciado na semana passada que os EUA também processariam o pedido de 250 solicitantes de refúgio por dia que são considerados particularmente vulneráveis.

Muitas crianças estão viajando para encontrar a família, motivadas pelos rumores de que Biden deu passos significativos para receber os migrantes e reverter a repressão imigratória de seu antecessor.

A republicana Beth Van Duyne, deputada representante do Texas, afirma que a política de Biden de permitir que crianças cruzem a fronteira sozinhas é responsável pela crise.

"[O governo] está incentivando de forma absoluta a separação das famílias."

"Nenhum desses centros está equipado para cuidar de crianças", acrescenta Van Duyne, que visitou pelo menos dois centros de detenção do estado.

Mas a congressista democrata Sylvia R. Garcia, que visitou vários centros, acredita que o governo deu passos significativos para melhorar as condições das crianças.

"Sim, há [problemas], mas estou dizendo a você que, com base no que estou vendo e em alguns (centros) que visitei, o governo está se saindo muito melhor do que antes, quando o surto começou, porque eles não estavam preparados para os altos números e não tinham as instalações prontas, agora têm."

Crianças sendo 'traumatizadas sem necessidade'

O cerne do problema é que o número de crianças migrantes que chegam aos Estados Unidos, seja com suas famílias ou sozinhas, tem aumentado de forma constante na última década, e o país não possui um sistema eficiente em vigor para reunir as crianças migrantes com seus familiares baseados em território americano, dizem os críticos.

"As crianças que chegam aos Estados Unidos estão sendo traumatizadas sem necessidade devido ao fracasso de longa data dos Estados Unidos em construir um sistema moderno de gerenciamento de fronteiras que reconheça as tendências de migração do século 21", afirma Warren Binford, do Willamette University College of Law, no Oregon.

Ariany, a menina de 10 anos que passou semanas nas tendas de Donna, desenhou corações e flores enquanto estava em outro abrigo.

"Eu desenhei porque estava triste", diz.

Ela nos mostrou as palavras que havia escrito em espanhol ao lado do desenho. "Quer dizer: 'Eu te amo, mãe. Eu amo todos vocês'."

Sonia, mãe de Ariany, conta que a filha, que já foi uma menina animada e sociável, mudou desde que passou pelo centro de detenção.

"Ela está muito quieta, quase não fala. Não suporta crianças perto dela agora."

"As crianças com as quais mais nos preocupamos são aquelas que ficam quietas", adverte a psiquiatra Amy Cohen. Segundo ela, o perigo, sobretudo para as crianças mais novas, é que "o trauma vai para o subsolo, fica como minas terrestres sob a superfície".

Agora Ariany tem pesadelos.

"Ela tem muito medo de dormir. Acorda chorando, gritando", revela a mãe.

Paola diz que quando voltou para casa chorava a qualquer hora do dia e da noite, e que também tinha dificuldade para dormir.

"Não acho que ninguém neste país... merece ser tratado assim", desabafa.

"Às vezes, eu fingia ser forte, porque nessa vida você precisa ser forte. Mas esse tipo de coisa deixa marcas nos nossos corações, porque mesmo que a gente supere isso, sempre vamos nos lembrar."