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Eclosão de movimento antirracismo propaga a cultura e a arte negra em todo o mundo

3.jun.2020 - O ator John Boyega faz discurso para manifestantes em protesto contra o racismo em Londres - Daniel Leal-Olivas/AFP
3.jun.2020 - O ator John Boyega faz discurso para manifestantes em protesto contra o racismo em Londres Imagem: Daniel Leal-Olivas/AFP

05/06/2020 14h31

As manifestações em memória a George Floyd resultaram em um imenso movimento de protesto contra o racismo em todo o mundo. O debate mobilizou a classe artística, trazendo à tona a cultura negra como manifesto.

As redes sociais foram inundadas por músicas, vídeos, performances de artistas negras e negros. Junto à hashtag #BlackLivesMatters (Vidas Negras Importam), outras hashtags ganharam espaço na internet, como #BlackArtMatters (A Arte Negra Importa) e #BlackMusicMatters (A Música Negra Importa).

Nas redes sociais, nos últimos dias, internautas lembram que jazz, blues, rock, funk, soul, disco music, house e techno - todos esse estilos musicais - não teriam existido não fossem artistas negras e negros. James Brown, Nina Simone, Jimi Hendrix, Aretha Franklin, Stevie Wonder, Tina Turner, Donna Summer, Marvin Gaye, Diana Ross, Michael Jackson, Beyoncé, entre tantos outros grandes nomes da black music, dominaram as timelines nos últimos dias.

Não é por acaso que nos últimos dias faixas como "Alright", do rapper Kendrick Lamar, ou "This is America", de Childish Gambino, voltaram aos primeiros lugares das músicas mais acessadas pelos internautas em plataformas de streaming musical. Em comum entre as músicas mais procuradas pelo público nos últimos dias estão a expressão da revolta contra o racismo e a denúncia de violências, injustiças e desigualdades que fazem parte do cotidiano de negras e negros em todo o mundo.

O "artivismo negro" e a "afrobetização"

Essa intrínseca relação entre manifesto e cultura é o que define "artivismo negro", como explica em entrevista à RFI o ator Denilson Tourinho, mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e idealizador do Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras.

"A arte é, sem dúvidas, um dos meios mais eficazes para apresentar o nosso discurso. Como bem diz Nilma Lino Gomes, pesquisadora de Belo Horizonte, o movimento negro é educador. Ele educa e se reeduca também. E esse 'artivismo negro' está se reformulando de acordo com as possibilidades virtuais", afirma.

Para Denilson Tourinho, a arte e a cultura negras se tornaram espécie de mediadoras de processos de denúncias de injustiças dentro de uma perspectiva que chama de "afrobetização".

"O genocídio da população negra, o epistemicídio negro, a necropolítica que atinge a população negra fazem parte das produções artísticas negras. O teatro, o cinema, a literatura, a música têm evidenciado as nossas resistências e a nossa reexistência. As redes sociais são também um meio de expressão", reitera.

Do #BlackOutTuesday à #OndaNegra

Dentro dos conceitos de "artivismo negro" ou da "afrobetização", outras iniciativas emergem, como o movimento #BlackOutTuesday, idealizado por artistas negras e negros e gravadoras americanas, no qual as redes sociais foram invadidas por tarjas pretas para denunciar o racismo. No Brasil, a cantora Elza Soares fundou outro movimento, o #OndaNegra. Ela propõe que, ao invés das tarjas pretas, os internautas publiquem fotos de personalidades negras que admiram.

Nas redes sociais ou nas ruas, toda essa mobilização ganhou uma impressionante magnitude desde a semana passada. No entanto, a adesão online a esse movimento divide alguns artistas, como a violonista pernambucana Fernanda Primo, radicada na França.

"Muita gente que não tem engajamento nenhum participou do #BlackOutTuesday. Eu vejo que tem pessoas que participaram porque estão envolvidas na defesa da cultura, mas outras que nem vão lembrar disso no dia seguinte: uma forma forma muito superficial de luta, que é essa luta por internet, por hashtag. Eu acho que a luta é muito mais profunda que isso, e a sociedade inteira deveria estar engajada. Hashtag nunca me convenceu", afirma à RFI.

Gentem, eu respeito muito as manifestações e opiniões de todxs. Todo protesto é válido e não existe a maneira mais correta de fazer, mas eu NÃO vou esconder meus negros com uma tarja preta. Eu não vou me esconder num blackout que não faz sentido pra mim. Eu quero é luz, quero foco em nós, no povo preto desse país! Me perdoem, mas ver tanta gente linda e necessária escondida por um quadrado me da arrepios. Acho tão perigoso isso, gentem. Me faz pensar se o caminho é realmente esse e me da uma sensação de anulação, sabe? Porque não propormos então, que a rede toda, que todxs inundem as redes sociais com nosso povo preto. Principalmente as pessoas que são ou se autodeclaram brancas e possuem milhões de seguidores. Vale postar imagem de gente famosa, gente que não é famosa, daquela amiga negra que você admira, de um parente, do gerente da empresa que você trabalha, daquele estilista que você usa as roupas, do ex-presidente negro que você aplaude, da moça que cuida da sua casa, do porteiro, de todxs xs negrxs, sejam lá conhecidos ou não. Que tal? Não importa a sua raça, vamos subir a hashtag #OndaNegra e ocupar a internet com a imagem linda de uma mulher negra, de um homem negro e mostrar que não precisamos de uma tarja para protestar, mas sim de visibilidade. Eu vou começar postando essas mulheres negras fantásticas que eu amo, que me representam na vida e no meu @musicalelza ?? @larissaluzeluz @veronicabonfimoficial @laislacorte @khrystal @_janamo @juliatizumba @kesiaestacio . Sendo justa, me inspirei nos Stories do @flaviorenegado para essa campanha #ondanegra #vidasnegrasimportam #gentepreta #blackpeople #povopreto #visibilidade #representatividade #elzasoares

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Apesar da magnitude desta mobilização, que parece não encontrar consenso entre os próprios artistas, ela não é inédita, afirma a professora Rosangela Malachias, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Programa de Pós-graduação de Educação em Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

"A denúncia contra a violência e a morte de jovens negros sempre ocorreu e sempre se deu muito na perspectiva da cultura. O movimento hip hop, principalmente na cidade de São Paulo, no final dos anos 1980 e 1990, também vai fazer denúncias de violências policiais. Nos anos 1970, na época da ditadura militar, o samba passa a ser incorporado em uma ideologia de democracia racial. Os protestos nos Estados Unidos chegam ao Brasil naquele período com uma força muito grande, assim como chegam as influências das lutas africanas por independência", lembra, em entrevista à RFI.

Esse engajamento vai acentuar o protagonismo dos artistas negros na cultura brasileira. "Eu sempre digo que o Brasil seria muito chato se não fosse a população negra. Costumo dizer: é tudo nosso: hip hop, samba, rock, blues, jazz, as congadas, batuques... A cultura negra não é somente raiz, mas ela é movimento, é transcultural, é dinâmica: praticamente um combustível na criação deste país", avalia Rosangela Malachias.

Frutos da mobilização além das redes e hashtags

Para a professora, esse atual movimento é importante, mas ela espera que ele reflita também em mais investimentos para a classe artística negra. "Em que medida há uma valorização da cultura negra como possibilidade de investimento para que seus próprios criadores recebam dignamente. Não estou falando somente de músicos, mas também de pintores, poetas, escritores", reitera.

Já Fernanda Primo espera que a mobilização sirva para unir as pessoas em torno da igualdade. "É preciso que a humanidade condene a violência que coloca uns contra os outros, que denuncie como um todo a supremacia de uma etnia, que as lutas sejam universais", conclui.