Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Golpe de estado ou mais crise da democracia: a reforma de Bolsonaro
Leonardo Avritzer*
Jair Bolsonaro parece enfrentar um dilema existencial: sou um golpista do passado ou um destruidor da democracia no presente? É esse dilema que explica melhor a reforma ministerial de ontem.
Ela tem dois pontos contraditórios que mostram bem o tamanho dos dilemas do presidente. De um lado, o capitão sacou Ernesto Araújo porque um presidente está obrigado a operar dentro dos princípios da ordem legal e se relacionar de igual para igual com o Congresso. Quando pensamos a substituição de Ernesto Araújo no Ministério das Relações Exteriores percebemos que Bolsonaro, apesar da sua inspiração na lógica mais antidemocrática possível, precisa seguir alguns dos princípios mínimos da democracia.
Araújo caiu por dois motivos: porque o Brasil participa de uma ordem internacional cujos principais players são democráticos (vale a pena aqui lembrar que Araújo se indispôs mesmo com players não democráticos, incluindo a China). Em segundo lugar, Araújo caiu porque se indispôs com o Congresso Nacional, especialmente com as principais lideranças da Câmara e do Senado. A possibilidade do presidente ancorar a sua gestão no Congresso Nacional ficou comprometida. Assim, o primeiro ponto da reforma ministerial de ontem foi a ideia de que Bolsonaro percebe que opera no campo da democracia, ainda que, como ele mesmo já afirmou, esse não seja o seu campo preferido de ação.
Foi exatamente por isso que Bolsonaro atuou em um segundo campo, com a substituição do Ministro da Defesa. O segundo elemento da reforma está ligado aos instintos golpistas ou bonapartistas do presidente. Bolsonaro sabe que opera no campo da democracia, mas não gosta desse campo e sente-se confortável quando ameaça as instituições democráticas ou suas lideranças. Desautorizado diversas vezes pelo ex-ministro da defesa Fernando Azevedo e Silva, Bolsonaro resolve então dar um passo adiante (ou atrás). Esse passo o leva a demitir o ministro.
O Brasil é um país no qual os ministros da Defesa e do Exército, em geral, não são demitidos. O último de fato demitido foi o general Sylvio Frota, que tentou resistir à demissão pelo ex-presidente Ernesto Geisel. Diga-se de passagem, alguns dos principais assessores de Bolsonaro estiveram presentes na tentativa de quartelada de Sylvio Frota no final dos anos de 1970.
Assim, Bolsonaro, ao trazer Braga Netto para o Ministério da Defesa e ao reorganizar as Forças Armadas pode, talvez, conseguir algum alinhamento mais automático no campo militar. A pergunta, no entanto, é: até onde esse alinhamento iria? Até o apoio à decretação de um possível estado de sítio ou mesmo até uma ruptura institucional? Uma ruptura parece muito difícil, pois já não é tão fácil promover rupturas bruscas nas democracias que, no entanto, podem se degradar em mortes lentas.
Porém a mudança que mais nos interessa discutir é aquela que traz, para o Ministério da Justiça (MJ), o ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal Anderson Torres. O bolsonarismo como forma de governo ancora-se fortemente nos militares. Mas o bolsonarismo como movimento ancora-se ainda mais fortemente em policiais militares em geral acusados de crimes, violações de direitos humanos, além de forte indisciplina, como foi o caso de Daniel Silveira. Essa é a verdadeira base política de Jair Bolsonaro.
Trazer essa base política para o Ministério da Justiça pode, na verdade, levar a dois tipos de consequência. A primeira é abrir ainda mais espaço para um comportamento de policiais militares que reforce tensionamentos e discursos de ruptura. Isso pode levar a situações como as que se viu na greve dos policiais no Ceará ou incentivar a presença de policiais militares entre os manifestantes de extrema direita nas manifestações promovidas pelo capitão presidente. Tudo isso para criar um certo caos político.
Em segundo lugar, a mudança no MJ pode tensionar a hierarquia das Forças Armadas, ao colocar em questão sua concepção de ordem. Esse é o ponto chave desta conjuntura: as Forças Armadas irão reagir bem a uma tentativa que caracteriza o bolsonarismo, desde sua passagem por elas, de criar o caos hierárquico? Nesse caso não fará muita diferença se o ministro for Azevedo e Silva ou Braga Netto. De todas as formas, a concepção central do Exército Brasileiro é uma forte concepção de hierarquia que Jair Bolsonaro parece querer colocar em questão.
Certamente as instituições democráticas irão resistir a qualquer um desses movimentos, assim como a sociedade civil organizada. Certamente Bolsonaro irá isolar-se ainda mais no campo internacional, no momento em que ele precisa de apoio externo para sair da crise econômica e sanitária. Sem falar de uma inflexão no campo das forças de mercado que o apoiaram até aqui.
Assim, se Bolsonaro de um lado flerta com certo militarismo, dificilmente ele poderia implementar no Brasil um pinochetismo dos anos de 1970, no qual mercado e militares se aliariam a ele. Daí o dilema do presidente. Tampouco, ele conseguirá desestabilizar cada uma destas instituições sem encontrar forte resistência. Pode ser que a reforma ministerial de ontem seja a última cartada do bolsonarismo como movimento.
* Leonardo Avritzer é graduado em Ciências Sociais (1983) e mestre em Ciência Política (1987) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research (1993) e pós-doutor pelo Massachusetts Institute of Technology (1998-1999) e (2003). É professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG.
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