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A Cara da Democracia

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

As Instituições funcionam?

Congresso Nacional, em Brasília - Andressa Anholete/Getty Images
Congresso Nacional, em Brasília Imagem: Andressa Anholete/Getty Images

Colunista do UOL

05/04/2021 04h00

Lucio Rennó*

Há no Brasil um debate que parece eterno: nossas instituições funcionam? O presidencialismo com fragmentação partidária está fadado à sucessão de crises e uma certeza: instabilidade política como o equilíbrio dominante?

Ao longo do tempo, consolidaram-se grupos com visões concorrentes sobre essa temática, que hoje parecem bem delimitados. Há os negacionistas e os alarmistas. Para os negacionistas, não há crise da democracia, as instituições nunca funcionaram tão bem, os problemas vividos no Brasil são iguais aos que se passam em outros países, mesmo os com mais história e tradição democrática, e reformas políticas seriam prejudiciais para o funcionamento do sistema. Para esse grupo, há controles sobre tentativas de arbitrariedades e os freios e contrapesos oriundos da disputa entre os poderes constituídos evitam idiossincrasias.

Já para os alarmistas, tudo vai de mal a pior. O Brasil é pontuado por golpes sucessivos, que restituem ao poder forças conservadoras e antidemocráticas dispostas a tudo para se perpetuarem nessa posição. Há uma crise da democracia em andamento, com desrespeitos seguidos à constituição, e jogos procedimentais decidindo resultados. A presidência de Jair Bolsonaro epitomaria esse processo, embasada em uma clara agenda autoritária e permeada por uma retórica e prática populista de direita, excludente e conflitiva.

A verdade é que nenhum desses grupos conseguiu apresentar evidências contundentes e inequívocas de que está certo e o outro errado. Certamente a longevidade e resiliência dessa pergunta como orientadora dos principais debates nacionais sobre política não é bom sinal. Se estivesse tudo bem, não estaríamos seguidamente nos perguntando se está tudo bem. Então aqui fica um primeiro ponto: boas instituições são invisíveis. Simplesmente convivemos com elas. Servem como parâmetro para a definição do conjunto de alternativas disponíveis para nossas escolhas e dão vazão à solução de problemas e conflitos. Instituições fortes são imperceptíveis e não são questionadas; ao mesmo tempo limitam o leque de escolhas, moderando preferências para que decisões fruto de deliberação e negociação sejam possíveis. O fato de que seguimos nos perguntando se nossas instituições políticas funcionam é sinal de que há problemas.

Mas qual a dimensão desses problemas? Primeiro, as democracias tendem a ruir quando segmentos cada vez mais relevantes das elites políticas - aqueles que ocupam cargos de poder no sistema político - não estão comprometidos com os princípios básicos da democracia, não respeitam a incerteza das decisões, assegurando repetidamente resultados a seu favor através da manipulação das regras, e não aceitam derrotas. Portanto, a morte das democracias é ato de pessoas que habitam as instituições.

Chegamos assim a nosso segundo grande ponto: instituições são frutos de escolhas coletivas e são povoadas por pessoas que tomam decisões. As instituições são tão boas quanto as pessoas que as operam. Assim, para entendermos o funcionamento das instituições, precisamos olhar para o comportamento político dos atores que ocupam os espaços de poder: suas atitudes, crenças, orientações ideológicas, preferências sobre temas e políticas públicas.

No caso das nossas elites, nunca tivemos muita sorte. Nos falta muita auto-contenção: saber quando parar e admitir que não se pode ou deve ganhar sempre. A orientação dominante é mais sobre como posso usar o poder e as instituições em meu proveito próprio ao invés do que posso fazer para que atinjamos bens coletivos desejáveis. O compromisso com o bem público é artigo de luxo no Brasil. Os seguidos e significativos escândalos de corrupção, de desvio de recurso público, de malversação desse recurso, com partidos políticos que dão guarita a criminosos ao invés de serem filtro do sistema político, é sim um grave problema e não deve ser julgado em comparação com outros igualmente graves, como a nossa também persistente desigualdade e pobreza. Na verdade, há forte intersecção entre esses problemas.

Bolsonaro, nesse sentido, é uma grave ameaça à democracia brasileira. Suas sucessivas e persistentes tentativas de instauração de estados de exceção no país nas últimas semanas são clara manifestação de suas tendências autoritárias, já antes abertamente declaradas em atos e palavras como suas falas a favor do Regime Militar Autoritário dos anos 60 e da tortura, e sua participação em manifestações antidemocráticas em plena pandemia. Ele não está só nesse movimento. Bolsonaro quis comemorar na última semana o 31 de março com um golpe para chamar de seu com apoiadores no Congresso. O discurso antidemocrático nunca esteve posto de forma tão clara e contundente. Ponto para os alarmistas.

Contudo, Bolsonaro vem sucessivamente fracassando em fazer avançar sua agenda autoritária. Há movimentos de resistência dentro da elite que tem bloqueado essas estratégias. Nesse sentido, somos diferentes de outros casos, como o da Hungria de Viktor Orbán que ampliou seus poderes delegados durante a pandemia de Covid-19, o que parece ser o sonho de Bolsonaro. Ou seja, o quadro institucional vem bloqueando os ensaios ameaçadores da cúpula do poder. Ponto para os negacionistas.

Nossos colegas mais mal intencionados e bem humorados poderiam nos acusar de estarmos criando um novo grupo: os isentões. Nada estaria mais longe da verdade. No que tange às elites, claramente estamos em um ambiente tensionado e polarizado, com significativa amplitude entre os pólos e resistências mútuas embasadas tanto em posições ideológicas quanto, aparentemente, também afetivas, ancoradas em sentimos fortes como ódio e rancor. As instituições democráticas estão sendo tensionadas e testadas. O que nos cabe perguntar é se isso é um elemento passageiro, que a próxima eleição levará embora, ou se é algo mais permanente.

Para responder essa pergunta, precisamos avaliar o que pensam as massas. Esse é nosso terceiro ponto: a longevidade de movimentos das elites passa por sua congruência com as preferências da população. Há grupos no seio da população fortemente vinculados a um lado e outro? A polarização das elites tem respaldo popular e, portanto, eleitoral? Para isso, dados do projeto "A Cara da Democracia" são muito úteis. Permitem verificar como a cidadania pensa acerca dessas questões.

Nossos dados coletados desde 2018 têm mostrado uma base de apoio a Bolsonaro consistente ideologicamente, no sentido de compartilharem visões sobre temas políticos e políticas públicas. São favoráveis a políticas de segurança pública duras, políticas econômicas liberais, contrários às agendas de gênero e LGBTQI+ e críticos de políticas sociais inclusivas baseadas em raça. Há, talvez pela primeira vez na nossa história recente, um alinhamento ideológico conservador do qual Bolsonaro é seu grande artífice.

Ademais, esse grupo é bem mais favorável a soluções autoritárias. Bolsonaristas são mais fortemente favoráveis à intervenção militar e críticos das instituições democráticas. Assim como Bolsonaro, menosprezam a pandemia e apoiam as posições negacionistas (em relação à pandemia) do presidente.

Mas, os dados demonstram uma queda de posturas autoritárias na população. A defesa de uma intervenção militar em meio a desemprego alto cai de 25% de apoiadores em 2018, para 15% em 2020. Em situações de crime alto, o apoio à uma intervenção diminui de assombrosos 53% para 25%. Quando a corrupção é alta, esses números também caem de 47% em 2018 para 29% em 2020. Além disso, 21% dos eleitores em 2020 tendem a concordar com as posições negacionistas de Bolsonaro e 24% têm uma avaliação positiva de seu governo. Nossos estudos mostram uma correlação forte entre negacionismo, autoritarismo medido por preferências políticas e bolsonarismo, mas restrito a uma parcela minoritária da população.

O eleitorado apresenta crescente polarização, dado o surgimento de um alinhamento antes inexistente no pólo extremo da direita e que mobiliza com certa consistência um quarto da população. Mas essa polarização convive com apoio crescente à democracia e favorável a medidas de enfrentamento à pandemia mais moderadas e responsáveis. As sirenes alarmistas são necessárias para mostrar que tudo não é divino e maravilhoso e para nos manter atentos e fortes na defesa da democracia. Mas sem com isso negar nossos avanços, até como estratégia de defesa dessa mesma democracia.

A pesquisa "A Cara da Democracia" é uma iniciativa do INCT-Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação e do Cesop/Unicamp realizada desde 2018.

*Lucio Rennó é professor de Ciência Política na UnB, onde também fez sua graduação e mestrado, possui doutorado pela Universidade de Pittsburgh (2004) e pós doutorado no Latin American and Caribbean Studies Center da SUNY Stony Brook de 2004 a 2005 e no Institute for Latin American Studies do German Institute for Global and Area Studies, em Hamburgo, Alemanha, de 2009 a 2010. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Política Comparada, Estudos Legislativos e Comportamento Eleitoral.