Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Homenagem a Gláucio Soares, pioneiro na pesquisa de opinião eleitoral
Por Sergio Simoni Junior*
Este espaço é normalmente dedicado a mostrar resultados da pesquisa de opinião "A Cara da Democracia", que desde 2018 já realizou cinco ondas de entrevistas.
Além deste survey, o Brasil conta hoje com diversas pesquisas de âmbito nacional que mapeiam as intenções de voto, opiniões dos eleitores sobre nossas instituições e problemas políticos, identificação partidária, relação com a mídia, dentre outras temáticas de interesse público e para a ciência política.
Até pouco tempo, tinha-se poucos institutos privados ou ligados às universidades públicas que divulgavam seus levantamentos, alimentando o noticiário político e as pesquisas acadêmicas.
No último dia 14, as ciências sociais brasileiras perderam um de seus grandes mestres, pioneiro em diversas áreas e também, especificamente, na elaboração, aplicação e análise de uma das primeiras pesquisas de opinião política elaboradas por um acadêmico no país: Gláucio Ary Dillon Soares.
Neste pequeno texto, prestamos uma das inúmeras formas de homenagem a um dos principais cientistas políticos brasileiros: apresentamos novas análises a partir de dados coletados pelo autor no contexto das eleições de 1960 no então estado da Guanabara.
Naquele ano, tivemos eleições presidenciais e vice-presidenciais (àquela época, o voto era separado para os cargos). O estado da Guanabara, recém-constituído dada a transferência do Distrito Federal para Brasília, realizava suas primeiras eleições para governador e deputado estadual.
As entrevistas foram realizadas em agosto de 1960, algumas semanas antes da eleição, patrocinadas pelo jornal Correio da Manhã.
Como relatado pelo próprio Soares em depoimentos em 2008 e 2019, esse periódico, assim como outros da época, realizava o que se chamava de prévias eleitorais. No entanto, o desenho das pesquisas era elaborado sem parâmetros amostrais rigorosos, o que dificultava a apreensão das intenções de voto do eleitorado como um todo.
Para a pesquisa que coordenou, Soares, então com 26 anos, selecionou a amostra por meio de estratificação por zonas eleitorais a partir de dados do cadastro de eleitores cedidos pelo Tribunal Eleitoral.
Sempre atento ao rigor científico, o próprio Soares declarou que teve que treinar os entrevistadores e elaborar mecanismos de controle e checagem das entrevistas. As mais de 30 questões presentes no questionário permitiram ao cientista político produzir diversos trabalhos, entre artigos científicos, livros e textos em jornais, sobre o eleitorado brasileiro à época, inspirando direta e indiretamente outras análises.
Dentre elas, cabe ressaltar um sofisticado artigo de Amaury de Souza, outro renomado cientista político brasileiro também já falecido, que retrabalhou o material em uma análise original sobre o comportamento eleitoral (SOUZA, Amaury. "Notas de pesquisa - Determinismo Social, Racionalidade e o Voto Flutuante em 1960". DADOS n°9, 1972)
Apenas a partir do que foi relatado até aqui, já é possível destacar diversos aspectos que fazem de Gláucio Soares um dos grandes das ciências sociais brasileiras. O pioneirismo, a curiosidade aliada ao rigor científico, são algumas de suas marcas registradas.
Mais do que isso.
Essa pesquisa das eleições de 1960 também exemplifica o espírito de Soares de que a ciência é um empreendimento coletivo: as análises que apresentamos aqui se devem à sua iniciativa de disponibilizar os microdados no ICPSR (Inter-university Consortium of Political and Social Research), portal que reúne e permite acesso a dados de pesquisas produzidas por acadêmicos do mundo inteiro.
Esse consórcio inspirou iniciativas no Brasil, como o Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Em tempos de questionamento público sobre os procedimentos científicos, nada melhor que Soares para nos lembrar de que ciência se faz no debate constante entre pares.
Pois vamos a alguns dos resultados encontrados pelo autor. Costuma-se pensar que os partidos políticos pouco importavam para os eleitores à época. No máximo, que apenas pessoas com maior escolaridade poderiam desenvolver pensamento sofisticado a ponto de ter afinidades com os partidos. Pois bem, a pesquisa de Soares levanta evidências contrárias a essa visão.
O gráfico abaixo apresenta a frequência da resposta à pergunta "Qual partido político você prefere?", estratificada por quatro grupos de escolaridade:
Fonte: elaboração própria a partir de Soares, Glaucio. Voting Attitudes in Rio de Janeiro, Brazil, 1960. ICPSR07047-v1. Ann Arbor, MI: Inter-university Consortium for Political and Social Research [distributor], 1976.
Os resultados são límpidos: mais de 85% dos entrevistados declararam preferir algum partido. Mais do que isso, não existem diferenças no grau de partidarismo entre os níveis de escolaridade e o que se altera é o tipo de partido preferido: os de menor escolaridade aderem mais ao PTB, e os de maior à UDN, revelando uma forte estruturação dos partidos no comportamento dos eleitores.
Assim como hoje, à época a questão da relação entre os meios de comunicação e a disputa política era premente. Soares perguntou aos eleitores onde eles colhiam a maioria das notícias sobre política: cerca de 34% citou jornais impressos, 30%, as rádios, e 25%, a televisão.
Como mostra o gráfico abaixo, a forma de ter contato com o mundo político era altamente relacionada à intenção de voto para presidente: Jânio Quadros, que se sagraria eleito com apoio da UDN, tinha ampla maioria dentre as pessoas que acompanhavam o noticiário pela televisão.
Seu principal adversário, Marechal Lott, do PSD com apoio do PTB, empatava tecnicamente no eleitorado cujo veículo principal era o rádio.
Fonte: elaboração própria a partir de Soares, Glaucio. Voting Attitudes in Rio de Janeiro, Brazil, 1960. ICPSR07047-v1. Ann Arbor, MI: Inter-university Consortium for Political and Social Research [distributor], 1976.
Como eleitores formavam suas preferências partidárias? O órgão de imprensa específico impactava o comportamento político? Quais eram as opiniões sobre temas políticos e como isso se relacionava com o voto e a escolaridade? As perguntas poderiam se multiplicar, seja no estudo daquela experiência democrática, seja da atual.
A capacidade das ciências sociais brasileiras em formulá-las e em buscar suas respostas, por meio da pesquisa como "A Cara da Democracia", por exemplo, se beneficiou do trabalho e das iniciativas de Gláucio Soares. Seus ensinamentos e contribuições são essenciais na tarefa de compreensão da realidade brasileira.
* Sergio Simoni Junior é professor de ciência Política da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador do Cesop
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