Pobreza infantil na Argentina: 'Escutar meu filho pedir comida dói na alma'
"Escutar meu filho pedir comida dói na alma."
Yhovanna Vilca, 37, aperta as mãos ao narrar como se sentiu quando ouviu o filho de sete anos chorar porque tinha fome.
"Quando meus filhos me pedem algo e eu não posso fazer, me dói. Perguntam se tem carne, frango; querem banana, mexerica, e não temos para oferecer."
Na Argentina, a infância está sob risco. Estudo realizado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) aponta que 1 milhão de crianças no país vai dormir com fome, sem jantar.
Segundo o Unicef, em 2024, a pobreza na infância chegou a níveis radicais: 70% das crianças vivem em situação de pobreza e 30% estão abaixo da extrema pobreza na Argentina. Uma em cada quatro famílias deixou de comprar medicamentos para seus filhos, também apontou a entidade.
"Estamos enfrentando fome e muita insegurança. Como mãe, fico preocupada porque a violência está aumentando. As crianças não podem andar livremente nas ruas, somos roubados no próprio bairro. Começou a ter tiroteios, o que não existia antes. As crianças já não podem mais ir sozinhas para a escola. Isso angustia", disse Yhovanna, citando os efeitos paralelos da crescente pobreza na Argentina.
Este ano, um estudo do Observatório da Universidade Católica da Argentina apontou que 54,9% da população é pobre e 20,3% é indigente.
Para as crianças, o pão foi substituído por torta frita, receita que leva apenas farinha e água. "Dá pra fazer mais tortas fritas com pacote de farinha do que comprando pão", disse Yhovanna. "Comemos mais polenta, macarrão e torta de farinha de trigo frita. Quase não comemos frango e carne. No café da manhã, eu só tomo mate [chá típico argentino], para sobrar comida para os meus filhos."
A crise econômica vivida pelas famílias argentinas se agravou no contexto da desregulação da economia, a partir do Mega Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) instituído pelo governo de Javier Milei em dezembro de 2023. O DNU desvalorizou o peso em mais de 50%, suspendeu a lei de regulação de alimentos pelo Estado e retirou subsídios de serviços públicos, como água, luz e transporte, com o objetivo de reduzir a inflação e cortar gastos públicos.
Crianças buscam comida nos restaurantes populares
O resultado da crescente crise social na Argentina é o aumento das filas nos comedores populares —lugares que oferecem comida grátis à população mais necessitada, geralmente mantidos por organizações sociais. Não foi difícil encontrar na favela Villa 20, na região de Lugano, extremo sul de Buenos Aires, dezenas de pessoas, entre elas crianças, que faziam filas em frente a portões estreitos, de onde saiam com vasilhas de comida.
"Tem cada vez mais gente com fome, e muitas vezes temos que fazer milagre com a quantidade de alimento que chega para cozinhar. Tem mais gente do que comida", contou a líder comunitária Noemi Ávalos Figueiredo, que atua no comedor popular Javier Barrio Nuevo, no bairro de Constituição, também na zona sul de Buenos Aires, e colabora com os comedores populares na Villa 20.
Noemi relatou que muitos comedores que ofereciam almoço e jantar agora só conseguem oferecer uma refeição. "As organizações apelam a todos os atalhos para oferecer um prato de comida às pessoas em situação de vulnerabilidade social nas favelas, porque não chega ajuda do governo", afirmou.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receber"A comida aqui é muito gostosa", disse o menino Lucas, 6, que brincava com um pião de plástico enquanto esperava na fila. Lucas contou que vai todos os dias buscar almoço e que à noite sua mãe vai a outro comedor buscar o jantar. "Meu prato preferido é o guiso, mas hoje não tem", contou. O guiso é um prato típico argentino, uma espécie de sopa quente e gordurosa, muito consumida no inverno.
Governo estocou alimento e não distribuiu
Em maio, algumas organizações sociais responsáveis pelos comedores populares denunciaram que a ajuda dos municípios e as doações não eram suficientes e que os fundos do governo federal não chegaram.
No primeiro semestre, protestos pela falta de entrega dos alimentos aos comedores populares foram registrados em frente ao Ministério do Capital Humano, em Buenos Aires. Na época, o governo argentino se justificou dizendo que estava realizando auditorias nos programas sociais.
Recentemente, jornais argentinos denunciaram que mais de cinco toneladas de alimentos estavam estocados no Ministério do Capital Humano, enquanto milhares de famílias passavam fome —muitos produtos venceriam em breve, como leite em pó. A crise resultou na saída do secretário de Crianças, Adolescentes e Família, Pablo De la Torre, e na decisão de que o exército distribuísse os alimentos que estavam para vencer.
A insegurança alimentar
A cada criança que vai para a cama com fome, há um cenário de cuidadores que são afetados pelo ajuste econômico, o desemprego e a perda de subsídios. De acordo com o Unicef, o cenário de pobreza entre as crianças na Argentina só não é mais grave porque 4,5 milhões de adultos deixaram de fazer uma refeição no dia, sendo a maioria pais e mães, ou seja, é gente que não come para que os filhos possam comer.
"Isso é o resultado de anos de situações econômicas complexas, que nos impactam hoje com esse dado alarmante. Se isso não for erradicado, teremos consequências terríveis no futuro", afirmou Sebastian Waisgrais, especialista em Inclusão Social do Unicef.
Pelas ruas da periferia de Buenos Aires, a preocupação também é grande com os mais velhos, que na maioria das vezes não têm cuidadores, recebem baixas aposentadorias e precisam de comida e remédio.
"Tem muitos idosos aqui no bairro que estão passando fome também. E não podemos negar comida. Temos que dividir o que temos", contou Alicia Ribas Limate, 62, que organiza um comedor popular na Villa 20. "Oferecemos um lanche, que é leite com bolacha, e à noite oferecemos jantar. As filas são cada vez maiores", relatou.
"Antes, tínhamos comida e podíamos alimentar as pessoas. Agora não. O auxílio do governo reduziu muito, e vários comedores fecharam", contou Alicia, que divide o espaço de uma cozinha pequena, onde só cabem um fogão e uma mesa, com várias mulheres que ajudam a cozinhar e alimentar centenas de famílias em situação de vulnerabilidade.
"Meu maior medo é que essas crianças vão para o crime, porque muitas escolas também não estão oferecendo merenda. Eles vão crescer nessa situação e podem ser cooptados, claro", disse Alicia, conhecida como "avó de todos" pelo seu trabalho com a comunidade.
Recessão econômica, desemprego e pobreza
No primeiro trimestre de 2024, o PIB (Produto Interno Bruto) da Argentina caiu 5,1%, e a taxa de desemprego chegou a 7,7%, um salto em relação aos 5,7% registrados no último trimestre de 2023. Esses dados se contrapõem à queda da inflação mensal registrada pelo governo nos últimos meses. A inflação fechou em 4% em julho e em 263,4% no acumulado de um ano.
De acordo com a pesquisa Opina Argentina, realizada em junho, a falta de emprego preocupa mais os argentinos do que a inflação. Dos 2.591 entrevistados, 37% disseram que o desemprego é o maior problema que o governo Milei deveria resolver, enquanto a inflação preocupa 29% da população.
Em agosto, o governo argentino estimou que, desde dezembro, 115 mil postos de trabalho formais no setor privado foram fechados, de acordo com informações da Secretaria de Trabalho. Enquanto isso, o universo dos PJs (trabalhadores autônomos) aumentou em 7%.
Para o Unicef, a fome entre as crianças na Argentina também pode ser explicada pela redução dos empregos e os baixos salários. Segundo a agência, em 2024, 15% das famílias na Argentina perderam o emprego, sendo 65% delas de classes sociais mais vulneráveis.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.