André Santana

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Reportagem

Dia da Mulher Negra: mães sofrem com morte de filhos pela polícia

O dia 25 de julho tornou-se a data para denunciar problemas cotidianos sofridos por mulheres negras da América Latina e do Caribe. São violências causadas pela soma do machismo e do racismo, que se abatem com ainda mais força nessas regiões de passado colonial e escravocrata e de permanente descaso dos governos em interromper essas práticas.

Entre essas mulheres, há aquelas que buscam forças para enfrentar uma dor ainda maior, que é a de perder um filho para a violência do próprio Estado: são as mães que tiveram seus filhos assassinados em operações policiais.

Hoje, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, foi feito o lançamento, em Salvador, da pesquisa "Vozes da Dor, da Luta e da Resistência das Mulheres/Mães de Vítimas da Violência de Estado no Brasil".

O estudo foi realizado pelas próprias mães, que se tornaram pesquisadoras sociais, em uma parceria entre o Movimento Independente Mães de Maio e o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF Unifesp), com financiamento da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Desde 2021, 24 mães se reuniram para escutas e trocas de relatos sobre os sofrimentos causados pelas perdas, o descaso das autoridades e a luta por justiça.

Corpo nunca encontrado

É o caso de Rute Fiúza, 56 anos, que há quase dez anos precisa conviver com o sofrimento do desaparecimento do seu filho, Davi Fiúza, que sumiu no dia 24 de outubro de 2014, após uma abordagem realizada por policiais do Pelotão de Emprego Tático Operacional (Peto) e Rondas Especiais (Rondesp) na periferia de Salvador.

Testemunhas denunciaram que ele foi encapuzado com a própria roupa, teve mãos e pés amarrados e foi colocado pelos policiais no porta-malas de um carro que não tinha identificação como veículo policial.

Rute percorreu delegacias, Instituto Médico Legal e até locais de "desova" de corpos em busca do filho, que na época tinha apenas 16 anos. O corpo de Davi nunca foi encontrado.

Em 2023, ela recebeu o atestado de óbito do filho, documento importante para o processo contra os policiais envolvidos no crime.

"É o Estado comprovando a incapacidade de apresentar o corpo do meu filho e também o atestado de como agem de forma violenta nas operações do próprio Estado nos bairros pobres", lamenta Fiúza.

"Não acredito mais na Justiça brasileira"

Apesar do inquérito policial ter indiciado os 17 policiais militares que participaram da abordagem, o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) ofereceu denúncia contra sete deles, por sequestro e cárcere privado, em 2018.

Já a Polícia Militar instaurou apenas um processo administrativo disciplinar para apurar a conduta dos PMs indiciados também em 2018, quatro anos após o desaparecimento de Davi.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça negou o pedido da defesa dos policiais militares para que o caso não fosse levado a júri popular e que fosse mantida a competência da Justiça Militar.

"Não acredito mais na Justiça brasileira. Foi importante sair do círculo vicioso da vara militar, mas, independentemente de ser júri popular, os parâmetros da Justiça são os mesmos, de racismo e de descaso com as vidas", lamenta Rute Fiúza, que precisou sair da Bahia após receber ameaças de morte.

Rute Fiuza, mãe de Davi Fiuza, desaparecido após abordagem em 24 de outubro de 2014 em Salvador
Rute Fiuza, mãe de Davi Fiuza, desaparecido após abordagem em 24 de outubro de 2014 em Salvador Imagem: Divulgação/Anistia Internacional

Ela informa à coluna que, das 24 mães envolvidas na pesquisa e que tiveram seus filhos mortos em ações policiais, 23 são mulheres negras e todas moradoras da periferia.

O levantamento envolveu rodas de diálogos e memórias compartilhadas por mães de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Ceará. Em comum entre elas, violências ao longo da vida pela condição de mulheres negras e o adoecimento agravado pela perda violenta de seus filhos.

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A doutora em política social Yanilda González, professora na Harvard Kennedy School, da Universidade de Harvard, contou para a coluna que apesar da pesquisa ter sido realizada em quatro estados brasileiros de realidades diferentes, percebeu-se um padrão da atuação do Estado.

"É o que chamamos de modus operandi do Estado e do tratamento dado pela Justiça no qual, com raras exceções, há o arquivamento dos casos, a criminalização dos jovens assassinados e a criminalização de toda a família", explica a pesquisadora norte-americana.

Yanilda González chama atenção também pelo que há em comum entre as dificuldades das mães para obter a resolução dos crimes. "Sem atenção desde a denúncia, elas tiveram que buscar sozinhas as evidências dos crimes, às vezes precisando ir a locais perigosos, sozinhas, sem nenhum amparo do Estado".

Outro dado apresentado pela pesquisa são os impactos para a estrutura familiar das vítimas. "Boa parte dessas mães não conseguiu mais trabalhar. Em muitos casos, os filhos assassinados eram os sustentos das famílias, que sofreram uma piora na precarização econômica", ressalta González.

Adoecimento e transtornos emocionais

As mães pesquisadas também relatam ameaças, intimidações, invasões de imóveis e até violências físicas a outros membros da família.

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"Passei a ter síndrome do pânico e crises de ansiedade, que eu nunca tive. Tomo remédios diariamente e iniciei uma terapia, é uma dor imensa para toda a família", conta Rute Fiúza, que é mãe de mais três filhas e tem duas netas.

"A gente já percebia o adoecimento dessas mães, mas só viemos saber mesmo quando começaram os casos de hipertensão, diabetes e câncer nessas mulheres. Há casos de mães muito jovens com artrite, artrose porque somatizaram a dor". Ela conta que, em maio de 2018, uma das mães cometeu suicídio.

Uma realidade também compartilhada por Nivea Raposo, 49, do Rio de Janeiro que se tornou pesquisadora social.

Em outubro de 2015, filho dela, Rodrigo Tavares Raposo, 19 anos, que era soldado do Exército, foi morto por uma milícia na Baixada Fluminense.

Ela conta que, assim como outros, o processo se arrastou com idas e vindas até o arquivamento.

"Muitos outros casos de desaparecimento forçado não são nem notificados por não haver a tipificação e são dados como desaparecimentos voluntários", explica Nivea Raposo.

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Ela destaca que, dos casos pesquisados, apenas três tiveram algum tipo de julgamento e só um terminou em condenação dos policiais. "A maioria é transformada em legítima defesa ou homicídio culposo, sem responsabilização do Estado".

Lei Mães de Maio

Yanilda González destaca ainda que, além de contribuir para políticas públicas dos governos, a pesquisa quer fomentar iniciativas como o Projeto de Lei 2.999/22, do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), que busca a reparação integral a essas mães vítimas da violência do Estado.

A PL ficou conhecido como "Lei Mães de Maio", em referência às mais de 600 execuções ocorridas no ano de 2006 em São Paulo e na Baixada Santista. A maioria das vítimas eram jovens entre 15 a 24 anos de idade, negros e periféricos.

A pesquisa é financiada pelo Centro David Rockefeller de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Harvard, que recebeu as pesquisadoras para relatarem seus dramas a docentes e pesquisadores da universidade norte-americana.

"Os professores da Harvard ficam espantados por não saberem o quanto o Brasil é violento e racista. E o que mais os espanta é o desaparecimento desses jovens, sem respostas do Estado, um dado marcante da violência do Brasil e países da América Latina como a Colômbia".

"Esta pesquisa é um grito de socorro e de resistência. As mulheres e mães que perderam seus filhos para a violência de Estado não podem ser silenciadas. Nós nos organizamos para lutar contra o adoecimento e a impunidade, para que nossas histórias de dor possam se transformar em políticas públicas que previnam novas tragédias", espera Rute Fiúza.

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