De branco para pardo, só nas eleições: a 'afroconveniência' ataca novamente
É alarmante observar que cerca de 42 mil candidatos no cenário eleitoral de 2024 decidiram mudar a autodeclaração de raça. Desses, um total de 16,9 mil pessoas (40,4%) alteraram o registro racial de branco para pardo. Essas alterações, que abrem portas para o acesso às cotas no fundo eleitoral partidário destinadas a candidatos negros, escancaram em muitos casos a prática da "afroconveniência" — uma estratégia cínica de autodeclarar-se negro (preto ou pardo) apenas para garantir vantagens eleitorais.
De acordo com levantamento da Folha de S.Paulo, 27,6% foram no sentido contrário e resolveram mudar de pardo para branco, outros 14,8% de pardo para preto, e 11,2% de preto para pardo.
Um dos casos que ganhou visibilidade negativa foi do atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), que agora, de olho na reeleição, subitamente se autodeclarou pardo após se identificar como branco na eleição anterior. A campanha de Melo tenta justificar a mudança como uma "correção histórica", mas é difícil não questionar as reais intenções por trás dessa atitude, especialmente quando sabemos que recursos eleitorais são alocados para candidaturas negras.
Sua campanha virou até motivo de gozação e inspirou um vídeo do humorista Magnus (@magnusdeverdade), que zombou da transição que atribuiu ao "Modo ACM Neto ativado", em referência ao político baiano que experimentou a mesma "correção histórica" nas eleições 2022.
E não se engane: essa afroconveniência não se limita ao campo político. O aumento das autodeclarações de pessoas como pardas ou pretas em concursos públicos, processos seletivos e outras situações que oferecem benefícios a grupos racialmente identificados é notório. Trata-se de um tempo sensível que exige muito cuidado, ainda mais quando envolve políticas há muito tempo reivindicadas.
O Censo Demográfico de 2022 trouxe uma notícia, a princípio positiva, ao revelar que, pela primeira vez desde 1991, quando esse critério racial passou a ser considerado, a maioria da população brasileira se autodeclarou como parda, representando 45% dos brasileiros.
Se por um lado, esse avanço reflete uma crescente tomada de consciência e auto aceitação, mesmo diante da histórica construção deturpada da diversidade racial do país, no campo político, a prática segue perniciosa. Ao manipular autodeclarações raciais, candidatos subvertem as políticas afirmativas e distorcem a representatividade racial que as cotas no fundo eleitoral visam promover.
Na Bahia, o ex-prefeito de Salvador ACM Neto (União Brasil), que concorreu ao governo estadual em 2022, também entrou na onda, modificando sua autodeclaração de branco para pardo. O resultado? Uma enxurrada de críticas e memes e um questionamento constante ao candidato nos debates e programas eleitorais.
O neto de ACM foi teimoso e tentou manter a convicção da sua repentina condição racial. O resultado não deu certo. A população de Salvador reagiu e despertou eleitores de várias cidades a reagirem contra a afroconveniência.
É possível supor que o saldo negativo para a campanha de ACM Neto serviu de lição e provocou um breque nas intenções afroconvenientes. Tanto que os dois principais candidatos à prefeitura de Salvador em 2024, Bruno Reis e Geraldo Júnior correram para alterar suas autodeclarações de pardos para brancos, numa tentativa de afastar qualquer suspeita de apropriação indevida dos recursos eleitorais reservados a candidatos negros.
Apesar das medidas do TSE para conter abusos, como a exigência de confirmação de alteração de raça, as mudanças e justificativas frágeis apresentadas pelos candidatos deixam claro que ainda há muito a ser feito para garantir a autenticidade e a eficácia das políticas de inclusão racial na política brasileira.
Caso contrário, o acesso aos direitos e às oportunidades continuará restrito a grupos privilegiados, com histórico de benefícios ao poder, e a democracia continuará atingida pelas desigualdades raciais.
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