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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em 72 horas, governo Lula dá uma aula de democracia

Aline Sousa entregou faixa presidencial para Lula - Stuckert/Divulgação
Aline Sousa entregou faixa presidencial para Lula Imagem: Stuckert/Divulgação

Colunista do UOL

05/01/2023 08h56

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O balanço das primeiras 72 horas decorridas desde a posse do presidente Lula, com todo o simbolismo da transmissão da faixa mais emocionante que já vimos, escancara um compromisso íntimo e verdadeiro com a democracia e com as muitas reparações que precisam ser feitas, sobretudo as históricas. Nomeações, decretos e portarias firmadas pela Presidência da República e pelos diversos ministérios nos primeiros dias do ano demonstram convergência nesse campo.

Esse compromisso com a democracia se fez presente logo no discurso inaugural. Quando o metalúrgico recém-empossado no posto mais alto do serviço público ocupou a tribuna na Câmara dos Deputados para proclamar "democracia para sempre", o que ele fez foi transformar o poder do povo numa espécie de Wakanda, a ser defendida com todas as forças. Riscou o chão com uma faca imaginária e afirmou que, a partir daquele limite, a tirania não passa, a autocracia não avança.

Os eventos dos últimos dias nos mostram que esse compromisso com a democracia vai muito além do gogó, da retórica do discurso. Findo o período de quatro anos mais exasperador desde a era Médici - ou seriam seis? -, vivemos uma espécie de epifania da Justiça e da esperança, essa liga que é nosso vibranium e que voltou a aflorar em nossos quintais.

Se eu fosse um repórter mais aplicado, organizaria uma lista com todos os tentos publicados no Diário Oficial ou anunciados nas concorridas cerimônias de posse que se sucedem desde domingo. Parte das conquistas são de uma obviedade e de uma simplicidade comoventes. A Funai, por exemplo, deixou de ser Fundação Nacional do Índio para se tornar Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Ora, se há muito sabemos que índio não é um termo apropriado para qualificar homens e mulheres indígenas, e se esta reivindicação existe há anos, por que a alteração ainda não havia sido feita?

A troca de nome coincide com a posse da nova presidenta da autarquia, Joenia Wapichana, a primeira indígena a presidir a entidade. Por que demorou tanto? Também coincide com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, conduzido pela deputada federal eleita Sônia Guajajara. Por que uma pasta desta magnitude e com essa relevância social não veio antes do Ministério da Pesca ou do Ministério dos Portos?

É também a primeira vez que um homem negro assume o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Repete-se a pergunta: Por que demorou tanto? Sílvio Almeida, intelectual tão orgânico quanto discreto, autor do livro "Racismo Estrutural", já uma referência para toda pesquisa sobre discriminação e injúria racial, anunciou em seu primeiro dia no cargo a criação da inédita Secretaria de Promoção e Defesa das Pessoas LGBTQIA+. Por que ainda não havia uma estrutura semelhante? À frente da secretaria, a travesti Symmy Larrat, a primeira ativista trans a conquistar espaço no segundo escalão do governo.

É ainda digno de destaque a profusão de mulheres negras que assumem ministérios não vinculados, digamos, à sua condição de minoria marginalizada, a causas que alguns chamam equivocadamente de identitárias (equivocadamente porque delas depende a superação dos nossos atrasos mais obtusos). Isso significa que não teremos mulheres negras apenas no Ministério da Igualdade Racial, com todo o simbolismo de Anielle Franco, mas também na Cultura com Margareth Menezes, no Meio Ambiente com Marina Silva, e, trunfo maior, na pasta de Ciência e Tecnologia com Luciana Santos. É muito significativo e algo emancipatório que a ponta de lança da ciência no Brasil seja ocupada por uma mulher negra, num país e num tempo em que negros e negras ainda são tão comumente associados a trabalhos braçais e de nível técnico.

Democracia é viver num país em que pretos e pretas, gays e lésbicas, travestis e indígenas comandam autarquias, secretarias e ministérios - de preferência sem que esse reconhecimento cause espécie ou vire notícia pela raridade ou ineditismo do ato. Chegaremos lá.

Nome e sobrenome

Os novos nomes dos ministérios, e não somente o da Funai, também têm sido inspiradores. O Ministério do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, virou Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar: uma forma de lembrar que quem alimenta nossa gente não são os gigantes da soja e da carne, como repetem acriticamente os entusiastas do agro, mas milhares de famílias que cultivam comida de verdade: arroz, feijão, mandioca, milho, batata, tomate, alface. É lembrar que parte significativa dessa produção se dá em assentamentos da reforma agrária, cada vez mais convertidos em sistemas agroflorestais agroecológicos, com consorciamento de espécies agrícolas e arbóreas e sem o uso de agrotóxicos, fertilizantes químicos e sementes transgênicas.

Outro ministério que mudou de nome foi o de Marina Silva. Ao Meio Ambiente foi acrescida uma atualíssima Mudança Climática, sinal de que o tempo do obscurantismo, do negacionismo e da devastação premiada estava nos acréscimos. Antes mesmo de sua cerimônia de posse, a nova ministra tratou de revogar atos do ex-ministro Ricardo Salles que estimulavam a impunidade de desmatadores e outros criminosos ambientais. Em resumo: voltamos a respirar.

Outras determinações divulgadas pelos novos ministros e ministras reforçam a confiança em tempos (mais) democráticos. Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (mais um negro no primeiro escalão) determinou investigação imediata sobre o aumento no preço dos combustíveis, prometeu desvendar o assassinato de Marielle Franco e garantiu que não haverá impunidade para os que promoveram atos de extremismo e estimularam afrontas ao Estado Democrático de Direito.

Na área da comunicação social, logo em 1º de janeiro, foram anunciadas duas iniciativas promissoras: a criação da Secretaria de Políticas Digitais, encarregada de buscar soluções para coibir desinformação e discurso de ódio e para democratizar o acesso aos meios de comunicação garantindo multiplicidade de vozes, e o Departamento de Direitos na Rede e à Educação Midiática.

Gilberto Carvalho, chefe de gabinete na Presidência da República nos primeiros mandatos, entre 2003 e 2010, assumirá a inédita Secretaria de Economia Solidária. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Cidadania (Consea) será retomado.

Ao tomar posse como ministro da Secretaria das Relações Institucionais, Alexandre Padilha anunciou a retomada de outro conselho, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, conhecido até recentemente como Conselhão, agora acrescido da palavra Sustentável. Alguém tem dúvida quanto à necessidade de caminhar na direção da sustentabilidade em 100% dos novos empreendimentos e projetos?

Para haver democracia

Este colunista esteve na posse do ministro Alexandre Padilha na segunda-feira. Do início ao fim, o discurso do novo chefe da pasta martelou o tema da democracia, segundo ele uma das quatro "missões" do ministério, ao lado de "diálogo", "instituições" e o "povo brasileiro". Contou rapidamente a história de sua família para destacar que o pai, o então militante da juventude metodista Anivaldo Padilha, foi preso, torturado e exilado em 1971 - e que ele, nascido quando o pai vivia no exterior, só pôde dar um abraço no pai aos 8 anos, quando ele pôde visitar o Brasil, em 1979. Difícil driblar a emoção quando o ministro, concluído este relato, repetiu as palavras ditas por Lula, garantindo que também o Ministério das Relações Institucionais terá o compromisso de defender a "democracia para sempre".

O tema surgiu em todas as posses às quais estive presente e, provavelmente, também nas demais. Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar, afirmou que "sem comida, não há democracia". Vinícius de Carvalho, da Controladoria Geral da União, disse que "não há democracia e soberania sem um Estado transparente, aberto ao diálogo, ao controle e à participação social".

A propósito, caberá ao ministro da CGU apresentar, em um prazo de 30 dias, um parecer sobre os sigilos de 100 anos baixados por Bolsonaro no último período. A orientação é abrir tudo aquilo cuja abertura não fira, de fato, a lei ou a Constituição.

"Sem anistia", gritaram apoiadores do novo presidente reunidos na Praça dos Três Poderes na tarde do dia 1º. O recado é para que haja Justiça, para que não se vire a página do governo Bolsonaro com a mesma displicência com que muitos tentaram virar a página da ditadura militar, para que a impunidade não brote como erva daninha entre os tijolos de uma democracia ainda em construção nem ameace como água infiltrada os alicerces do futuro de abundância e esperança que buscamos conquistar. Sem revanchismo, sem ódio, sem perseguição, mas com a mão firme do Estado democrático de direito. Com ampla defesa, com o reconhecimento de todas as prerrogativas e garantias constitucionais, com equilíbrio nas decisões e na dosimetria das penas, mas sem o vício hediondo do arbítrio. Direitos humanos para quem nunca soube respeitá-los. Democracia para sempre.