A gente se lê por aí (encontros e despedidas)
"O trem que chega é o mesmo trem da partida / A hora do encontro é também despedida"
(Milton Nascimento e Fernando Brant)
Uma mensagem de WhatsApp fez acordar um grupo que dormitava havia alguns anos no mais absoluto ostracismo, desde antes da pandemia. Era o grupo de antigos colegas da graduação em jornalismo. "Gente!", escreveu uma amiga, e não precisou mais do que isso para que todos aceitássemos o argumento. Alô-ô! Cadê vocês? Estão vivos? A gente nunca mais vai se ver?
Pelo histórico de mensagens, o último encontro com pelo menos metade da classe havia rolado em 2017, com a desculpa de comemorar 20 anos de ECA, ou seja, duas décadas desde quando nos conhecemos, em fevereiro de 1997, numa longínqua semana dos "bixos", na Escola de Comunicações e Artes da USP.
Encontros
Com ou sem tinta no rosto, somando a turma da noite e a turma da manhã, éramos quase meia centena de meninas e meninos, cada um de um canto, a maioria imberbe e sem saber o que fazer com as mãos. Entre os calouros daquele ano, alguns futuros jornalistas que hoje são meus colegas no UOL, como os colunistas Rodrigo Ratier e Julio Gomes e o editor Diego Assis. Entre os veteranos estava o Leonardo Sakamoto, comandando o trote na galera (a Fernanda tem fotos e pode provar!).
Desde então, a Dani virou atriz, o Vicente virou ator e o Fábio, se não me engano, auditor fiscal. A Nath se mudou para Londres, o TH para a Alemanha, o Márcio para Curitiba e o Tonho para Ubatuba. Jacques foi para Cananeia depois de uma temporada em Buenos Aires. Salvador virou referência em jornalismo científico com foco em astronomia e Fernando é uma figura conhecida no marketing esportivo. Aprendemos a chamar a Sui de Sui. O Zé foi trabalhar com o Lula, o Alex é meu compadre e o Murilo, meu chefe.
Alguns são professores, outros são repórteres, produtores, articulistas, assessores de imprensa, editores e pesquisadores. Alguns voltaram para a ECA e fizeram mestrado e doutorado (há quem nunca tenha saído de lá). Talvez o número de livros publicados seja maior do que o número de filhos. Perdi contato com a maioria. Joana me escreveu no ano passado para contar que havia encontrado minha professora de português da quinta-série na feira do bairro, vê se pode. Não tinha notícias da Flora desde 1990 — e da Joana, desde quando ela fazia dupla com o Clodovil na TV.
E agora? — alguém perguntou no grupo. — Já se passaram 25 anos? Vinte e seis? "Já deu quase 50!", brincou outra colega (sim, ela também é de humanas). Vamos nos encontrar?
Foi como um gatilho para que eu me pusesse a pensar em muito do que aconteceu nesses tantos anos.
Ao entrar na ECA, aos 17 anos, eu não tinha celular nem computador. Fazia fotos numa Pentax K-1000, inclusive as muitas que ilustraram matérias do Jornal do Campus e minha primeira e única exposição como fotógrafo, em 1999. Em negativo ou em cromo, aliás, rolos de 36 poses que precisavam passar pelos processos de revelação e ampliação.
Quando comecei a dirigir, quase toda semana consultava um guia de ruas da Mapograf, que vivia no porta-luvas do carro, para chegar às pautas ou às casas dos amigos. Só fui mexer com GPS depois de formado. O carro, a propósito, não tinha direção hidráulica nem trio elétrico, mas uma invejável disqueteira com espaço para dez CDs (que tocavam em rodízio, sem precisar trocar, uma maravilha). Nas viagens, recorríamos ao Guia 4 Rodas. Eu já trabalhava numa revista semanal e estava de casamento marcado quando descobrimos o miraculoso mecanismo de busca chamado Google.
Depois daquelas mensagens no grupo de zap, me dei conta de que, neste ano, estou celebrando uma espécie de jubileu de prata no jornalismo. "Um menino", diriam algumas das minhas principais referências na profissão, como Ricardo Kotscho, Juca Kfouri, Audálio Dantas, Caco Barcellos e até Eliane Brum, a caçula da turma, entre outros gigantes que tive a honra de conhecer nesses 25 anos de militância.
Sim, militância. Jornalismo é, por definição, militância. Não com o sentido de proselitismo eleitoral, como muitos imaginam, mas militância como ação compromissada, a "prática cotidiana do caráter" nas palavras de um antigo diretor da Folha chamado Cláudio Abramo. Militante, segundo o dicionário Michaelis, é aquele que milita, que luta e combate. É também aquele que defende uma causa ou uma ideia ativamente. E aquele que está em exercício, que desempenha uma atividade. Jornalismo — o bom jornalismo — é necessariamente missão, sacramento, entrega... e muito trabalho.
Fazer jornalismo requer, acima de tudo, que sejamos capazes de entender um único mandamento: nosso patrão é o cidadão.
Nosso patrão não é quem paga o salário (quando há salário) nem o anunciante (quando há anúncios). Também não é o cliente, o assinante ou o investidor. Tampouco o diretor, o publisher, o editor ou o gerente. É para os cidadãos e para as cidadãs que trabalhamos, e para mais ninguém. Leitor, ouvinte, espectador, internauta, não importa. O jornalismo desempenha uma função social e só faz sentido como serviço, o ato de servir: à cidadania, à coletividade, ao público. O que escapa disso não é jornalismo.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberDaqui a três meses, haverá o centenário da primeira lei de imprensa da República. A rigor, um decreto, promulgado em 31 de outubro de 1923 pelo então presidente Arthur Bernardes. "Regula a liberdade de imprensa e dá outras providências", diz o caput. Com 37 artigos, mais que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal decreto determinava pena de reclusão por até quatro anos ao jornalista que publicasse segredos de Estado. Até dois anos àquele que ofendesse a moral ou aos bons costumes. Calúnia, difamação e injúria também eram crimes passíveis de prisão. O decreto exigia ainda que todo jornal trouxesse o nome do editor no cabeçalho e instituía o direito de resposta.
Ao mesmo tempo em que mordia, também assoprava. Aos profissionais de imprensa condenados a regime de reclusão a legislação garantia o direito de ser recolhido a uma prisão "distincta da existente para os réos de delictos communs".
Há pelo menos um século, portanto, a prática do jornalismo não confere imunidade a ninguém. Mas pode contribuir para que alguns figurões, donos do poder político e, principalmente, do poder econômico, tenham sua imunidade ameaçada. E isso é bom.
Despedidas
Esta é minha última coluna no UOL. Foram 196 colunas semanais em quase quatro anos. Aceitei um convite do prefeito de Diadema (SP), José de Filippi (PT), para assumir a Secretaria de Cultura a partir da próxima semana. A política editorial do UOL impede que pessoas vinculadas à administração pública, em qualquer nível, mantenham colunas no portal.
Estreei esta coluna em outubro de 2019, precisamente no dia 24, discorrendo sobre a importância do jornalismo, particularmente do "jornalismo que incomoda". Na noite daquela quinta-feira, os repórteres Glenn Greenwald e Patrícia Campos Mello receberiam os principais troféus na cerimônia de entrega do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, o mais importante galardão do jornalismo nacional desde a extinção do Prêmio Esso, em 2016. Hermínio Sacchetta seria homenageado in memorian.
Voltei muitas vezes ao tema do bom jornalismo nestas quatro temporadas. Escrevi sobre censura, democratização da mídia, discurso de ódio, desinformação, assédio judicial e sobre a violência institucional praticada pelo governo Bolsonaro contra jornalistas, sobretudo mulheres, em clara tentativa de intimidar esses profissionais. Busquei apresentar em detalhes a importância de atualizar a regulação dos meios de comunicação e, mais recentemente, das big techs e plataformas digitais.
Algumas reportagens foram temas de colunas neste espaço: o padre estuprador de Monte Sião, a mulher da casa abandonada, o hacker de Araraquara. Falei de muita gente bacana: Sérgio Ricardo, Margarida Genevois, Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Pedro Casaldáliga, Caetano Veloso, Bernardo Kucinski, Clarice Herzog, Padre Júlio Lancellotti, Raul Seixas, Luiz Gama, Frei Tito, Marielle Franco, Arlindo Cruz, Dom Angélico, Amelinha Teles, Laerte e Zé Celso. Entrevistei Paulinho da Viola e Carlinhos Marighella, o filho do inimigo público número 1 da ditadura militar. A ditadura e seus métodos, a tortura, o desaparecimento e a ocultação de cadáveres, bem como a presença crescente de militares no poder, as ameaças à democracia, a evocação recorrente da hoje extinta Lei de Segurança Nacional, a busca permanente por memória, verdade e justiça foram outros temas recorrentes neste espaço. Levei pau pra caramba nos comentários e nas redes sociais. Ganhei alguns elogios.
Depois de 15 anos trabalhando exclusivamente com reportagem, comecei a escrever colunas de opinião entre 2015 e 2016. Publiquei no Brasil 247, com presença irregular, depois estive por um ano e pouco no site da Carta Capital antes de migrar para o UOL. Lá e aqui, trabalhei sempre com liberdade, publiquei os artigos e as crônicas que quis, com as palavras e os títulos que me pareciam apropriados, o que faz de mim um colunista satisfeito, aquela história do bom combate, coisa e tal. Agradeço à turma que me recepcionou e ajudou na alameda Barão de Limeira nesse período, nas pessoas de Murilo Garavello, Alexandre Gimenez, Clarice Sá, Nathan Lopes, Vanessa Alves Baptista e outros, dos quais certamente estou me esquecendo.
Sem fechar os olhos para os diversos problemas que afetam a prática do jornalismo, entre os quais a fuga de anunciantes, o enxugamento das equipes, a substituição dos mais experientes por gente cada vez mais nova, a pressão para publicar rapidamente e com uma embocadura que sirva para "caçar cliques", a extinção dos revisores e checadores, a tendência ao jornalismo declaratório e preguiçoso e outros sintomas inerentes a um universo em que se lê cada vez menos, inclusive quem produz conteúdo, estou certo de que o UOL tem desempenhado um trabalho necessário, tanto no jornalismo opinativo quanto nas reportagens.
É um risco descomunal citar nomes, mas, pessoalmente, não tenho passado muitos dias sem conferir o que escrevem os colegas Jamil Chade, Cristina Fibe, Jeferson Tenório, Marina Rossi, Matheus Pichonelli, Julián Fuks e Milly Lacombe, além dos já citados Rodrigo Ratier, Leonardo Sakamoto e Ricardo Kotscho. Foram dois jornalistas do UOL, Juliana Dal Piva e Thiago Herdy, que fizeram a reportagem mais importante de 2022, sobre a compra de mais de 50 imóveis com dinheiro vivo pela família Bolsonaro. Foram também dois jornalistas do UOL, Adriano Wilkson e Janaina Cesar, ela colaboradora radicada na Itália, que revelaram, recentemente, os áudios de Robinho sobre a noite em que o jogador e cinco amigos estupraram uma jovem numa boate em Milão, até agora a reportagem mais foda do ano.
Devo voltar a publicar colunas de opinião em breve, ainda não sei quando nem onde. Por ora, desembarco na administração pública com a esperança de poder contribuir com o importante trabalho que tem sido desenvolvido em Diadema pelo prefeito, hoje no quarto mandato, e sua equipe. Chego com o compromisso de ajudar a elaborar, implementar e conduzir políticas culturais que satisfaçam as demandas da população, ajudem a promover cidadania e contribuam, à sua maneira e de acordo com as possibilidades, para a construção de uma democracia de alta intensidade.
"Numa sociedade de classes, de exploração, dominação e exclusão social", escreveu a filósofa Marilena Chaui, secretária da Cultura de São Paulo entre 1989 e 1992, "a cultura é um direito do cidadão, direito de acesso aos bens e obras culturais, direito de fazer cultura e de participar das decisões sobre a política cultural."
Às alunas e alunos da Faculdade Cásper Líbero informo que ainda não vai ser desta vez que vocês ficarão livres de mim. Manterei as aulas de Teoria e Prática da Reportagem. A mesma coisa para as alunas e alunos de Pesquisa Autoral no Colégio Santa Cruz. Temos muito a fazer neste semestre. Nos vemos na semana que vem!
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.