Camilo Vannuchi

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Opinião

A mosca na sopa e a algazarra para indicar uma mulher para o STF

"Eu sou a mosca que pousou em sua sopa / Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar." Os versos são muito conhecidos. Pontuados por atabaques, triângulo e caxixi e entoados em ritmo de capoeira, são eles que introduzem a primeira faixa do primeiro álbum solo e autoral do roqueiro baiano Raul Seixas, lançado pela Philips há exatos 50 anos. Revelado para o grande público em setembro do ano anterior, quando subiu ao palco do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, para defender o "baioque" (mistura de baião com rock) "Let me sing, let me sing" na 7ª edição do Festival Internacional da Canção (FIC), Raul emplacara seu primeiro compacto simples na esteira do festival e chegou a julho de 1973 com pelo menos outro hit tocando nas rádios: "Ouro de Tolo". Discorrendo sobre disco voador, pipoca aos macacos e boca escancarada cheia de dentes, a música de trabalho ocuparia a última faixa do LP de estreia, "Krig-ha, Bandolo", no qual aparecem as primeiras parcerias com o então letrista Paulo Coelho.

Muita coisa aconteceu a partir daquele disco. O encarte foi apreendido pela repressão, Paulo Coelho foi preso e torturado para revelar o significado subliminar de alguns textos - incluindo o excêntrico título do álbum, que poderia ser traduzido por "cuidado com o inimigo" no idioma fictício falado por Tarzan -, e ambos foram pressionados a explicar o que era a Sociedade Alternativa, para a qual estariam recrutando jovens incautos. "Mosca na Sopa", composta apenas por Raul, provocava nos ouvintes o mesmo estranhamento que o zumbido do inseto despertava no poema - e funcionava como um spoiler da obra do jovem cantor, então com 28 anos, e do que ele pretendia representar dali para frente: uma presença inconveniente, irritante, teimosa, repetitiva. No seu caso, contra a censura, mas também contra o conservadorismo, a hipocrisia, o status quo, o sistema - que ele chamaria de "Monstro Sist" num repente gravado no ano seguinte.

Algumas moscas na sopa continuam necessárias. As que lutam por toda a vida são imprescindíveis.

Hoje, por urgência e precisão, há um enxame dessas moscas, que os detratores decidiram classificar como "identitárias". São, grosso modo, moscas irritantes, teimosas, repetitivas, porque entendem a centralidade do combate a violações de direitos influenciadas por fatores como raça, gênero e orientação sexual.

Na opinião dos que apontam o DDT contra essas moscas na sopa, seu zumbido é diversionista e alienante, e teria o efeito colateral de desmobilizar lutas supostamente mais centrais e urgentes, como a luta de classe ou a luta contra o capitalismo, origem de todo o mal. O argumento é compreensível, mas limitado. E raramente considera o ponto de vista daqueles que sentem na pele, todos os dias, o açoite do racismo, as navalhas da homofobia e da transfobia, o "deixa disso" cúmplice da uma sociedade violentamente machista - desavergonhadamente machista - perante a misoginia diária, o assédio cotidiano, o estupro nosso de cada dia.

A boa notícia é que esse enxame está cada dia mais populoso, ágil, sagaz: abusado. E não adianta tentar exterminar as moscas. Você mata uma e vem outra em seu lugar.

As muitas manifestações recentes que cobram do presidente Lula a indicação de uma ministra para o Supremo Tribunal Federal fazem parte dessa algazarra de moscas imprescindíveis. E o fazem com muita correção. "Mas o presidente escolhe quem ele quiser", reagem alguns. Claro que sim. Por isso o movimento é sempre de recomendação. Consiste em sugerir que o presidente não entregue ao país uma suprema corte ainda mais masculina do que a atual. Com este objetivo, apresenta argumentos e propõe nomes. Há dezenas de possibilidades, mulheres de diferentes estados, origens, idades e classes sociais. Brancas e pretas.

"Ah, vocês estão querendo um novo Joaquim Barbosa", há quem acuse. A lembrança é oportuna. Em sua primeira indicação ao STF, no primeiro ano do primeiro mandato, Lula fez o importante gesto de indicar um homem negro para a vaga. Dois anos depois, Barbosa seria o ministro relator da ação penal 470, popularmente conhecida como processo do Mensalão, uma hecatombe que atingiu em cheio o PT e o núcleo duro do governo, culminando na prisão de dirigentes partidários e ministros, como José Dirceu, alguns deles condenados com base em conceitos controversos festejados por Barbosa, como a teoria do domínio do fato.

A reputação do ministro negro despencou entre os simpatizantes do presidente, eleito mais uma vez em 2022, mas nem por isso é possível deduzir, como fazem alguns, que a experiência será repetida. Tal crença só faria sentido se fundada na tese de que um novo ministro negro, ou uma ministra mulher, estaria fadada a repetir os equívocos de Joaquim Barbosa. O nome disso é racismo. Ou sexismo. Ou ambos.

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Barbosa foi o terceiro ministro negro do STF em 132 anos. Até hoje, o único desde a redemocratização. Nesses 38 anos, 26 homens brancos passaram pelas onze cadeiras do tribunal e apenas um homem negro. Somente três mulheres, todas brancas, em quase quatro décadas. É pouco. É muito pouco. Quase nada.

Defender maior diversidade nos assentos do STF não é mimimi nem diversionismo. É simbólico e revolucionário em muitos sentidos. Democratizar o primeiro escalão do judiciário, bem como equilibrar a presença de mulheres e negros no parlamento, nas prefeituras, nos governos estaduais, é etapa fundamental para imprimir à sociedade brasileira a mudança pela qual ela precisa passar com urgência urgentíssima.

Meninas precisam olhar para o STF e se sentir representadas. Meninos negros precisam olhar para o STF e se sentir representados. Tanto uns quanto as outras precisam ingressar na faculdade de direito com a convicção de que poderão estar lá um dia, que seu lugar é onde quiserem, não como quem sonha, mas como resultado natural de uma vida dedicada à justiça e à defesa da Constituição. "Ah, mas são apenas onze ministros, é óbvio que a maioria dos operadores do direito jamais chegará lá". Sim, obviamente. O que não é justificável - não em 2023 - é que olhemos para o STF e vejamos nove homens e apenas duas mulheres, todos brancos, proporção esta que poderá cair para dez homens e uma única mulher caso Lula indique mais um ministro homem para o lugar de Rosa Weber.

Reportagens recentes revelaram os bastidores do processo que condenou Robinho pelo estupro coletivo praticado contra uma jovem na Itália. Conhecemos em detalhes o estupro cometido por um ex-BBB. Fomos surpreendidos com as denúncias de violência sexual registradas contra Arthur Lira pela ex-mulher do presidente da Câmara. O que esses homens têm em comum além do fato de serem homens e terem sido denunciados por mulheres abusadas? Todos estão livres. Lira continua no cargo, Robinho joga bola e toca em rodas de samba, Felipe Prior é aclamado em suas redes sociais com mensagens de solidariedade e desagravo: "força, guerreiro", "Deus está contigo".

Os casos se sucedem. O médium João de Deus, o empresário Samuel Klein, o anestesista Giovanni Quintella Bezerra, o empresário marombeiro Thiago Brennand, o humorista da Globo, o padre de Monte Sião, o policial que estupra na viatura, o passageiro que ejacula em mulher dentro do ônibus, deputado que importuna deputada... No judiciário, como no parlamento, é inaceitável que as mulheres sejam tão poucas. Ampliar a representatividade é uma forma de voltar a respirar, é vislumbrar uma chance de mudança. Se fere minha existência, serei resistência, lembram? Ninguém solta a mão de ninguém?

Que essas moscas, as moscas que perturbam o seu sono, continuem a zumbizar pelo que é justo e necessário - até que o zumbido surta o efeito desejado. Tem que teimar.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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