O que a vida quer do jornalismo é coragem

O bom jornalismo saiu das cordas. Ainda respira com a ajuda de aparelhos, mas os prognósticos são positivos depois de um longo período de incertezas. É na adversidade que se reconhecem os melhores timoneiros - e seis deles tiveram sua atuação reconhecida na entrega do Troféu Audálio Dantas: indignação, coragem e esperança, na última terça-feira (6), véspera do Dia Nacional da Liberdade de Imprensa.

Emergimos de um período duro, de agressões sistemáticas, sabotagem institucional e incentivos à desinformação por parte do governo anterior, em especial do ex-presidente da República e seus apoiadores mais extremados. Como efeito colateral do autoritarismo de poucos freios e alta intensidade, o Brasil caiu da 99ª posição (em 2015) para a 111ª (em 2021) no ranking mundial da liberdade de imprensa elaborado pela ONG Repórteres Sem Fronteiras. Segundo outro estudo, o relatório Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil, produzido em 2022 pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) com base em notícias publicadas na imprensa e denúncias recebidas pelos sindicatos da categoria, Bolsonaro perpetrou uma em cada três violações à liberdade de imprensa registradas em 2021: 147 dos 430 ataques registrados.

"Foram quatro anos do cacete", resumiu em francês castiço o jornalista Leonardo Sakamoto, colunista do UOL, ao receber o Troféu Audálio Dantas em cerimônia na Câmara Municipal de São Paulo. Sakamoto foi um dos seis homenageados nesta quarta edição do prêmio, criado pouco antes da pandemia por um conjunto de entidades dedicadas à defesa do jornalismo e dos direitos humanos e com curadoria da Oboré, na figura de seu fundador, o polivalente Sérgio Gomes, e da família Kunc Dantas. Os aplausos serviram para corroborar a síntese. Sakamoto e os colegas agraciados pareciam aliviados. Jamais condescendentes ou distraídos, mas aliviados.

O alívio fora confirmado em maio pela mesma ONG Repórteres Sem Fronteiras. No mais recente ranking da liberdade de imprensa, o Brasil escalou nada menos que 18 posições, da 110ª posição (em 2022) para a 92ª (em 2023). O principal motivo? A voz das urnas. "A chegada do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva restaurou a estabilidade das relações entre a mídia e o governo", diz o relatório.

Além de Sakamoto, foram premiados Juliana Dal Piva, também do UOL, Bruno Paes Manso, Rene Silva, Valmir Salaro e Gregório Duvivier. Os feitos dessa turma são notáveis.

Juliana foi responsável por desvendar o esquema das rachadinhas da famiglia Bolsonaro e uma das jornalistas à frente da denúncia dos muitos apartamentos adquiridos com dinheiro vivo pelo clã. Sua incansável investigação ao longo de quatro anos culminou no livro "O negócio do Jair" (Zahar) e no podcast A Vida Secreta de Jair, do UOL Investiga. Seu profissionalismo, que alguns podem chamar de audácia, irritou Frederick Wassef, advogado do ex-presidente, que chegou a ameaçar a repórter em mensagem de WhatsApp: "Lá na China você desapareceria e não iriam nem encontrar o seu corpo."

Antes dela, Bruno Paes Manso publicou o mais importante livro de não-ficção de 2020. Vencedor do prêmio Jabuti na categoria livro-reportagem, "A República das milícias" (Todavia) não apenas refaz todo o processo histórico de construção do poder das milícias no Estado do Rio de Janeiro como denuncia as relações íntimas e perigosas que a famiglia Bolsonaro mantém com essa forma nada ortodoxa de poder paralelo. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Bruno integra a NBA do jornalismo focado em justiça criminal e segurança pública. Dois de seus outros temas do coração são as facções criminosas, como o PCC, e o insólito universo dos assassinos profissionais, os matadores de aluguel.

Veterano do jornalismo policial, Valmir Salaro estava especialmente emocionado no plenarinho da Câmara Municipal. Ao pegar o microfone, agradeceu com a voz quase embargada ao afirmar que não era merecedor do prêmio, afinal seu grande feito, motivador da honraria, havia sido um erro, e não um acerto. Valmir voltou à cena no ano passado após o lançamento do documentário "Escola Base, um repórter enfrenta o passado" (GloboPlay). Passados mais de 25 anos, o primeiro jornalista a publicar a denúncia de que duas ou mais crianças teriam sofrido abusos sexuais por parte do casal de proprietários de uma escola de educação infantil em São Paulo - uma notícia precipitada que se mostrou equivocada semanas depois, quando já havia destruído a vida dos envolvidos -, Salaro voltou a encontrar algumas daquelas pessoas e a percorrer os cenários da reportagem inicial para, numa espécie de expiação de culpa transmitida por streaming, dar uma aula de jornalismo sobre os equívocos de uma cobertura apressada, declaratória, sensacionalista e repleta de efeitos colaterais. Como fênix, logrou renascer das cinzas para perpetrar um legado importante em consonância com a tríade que inspira o troféu: sem indignação, coragem e esperança, esse documentário não seria feito.

A mais inspiradora das trajetórias homenageadas no prêmio é a de Rene Silva, jovem comunicador do Complexo do Alemão que criou o Voz da Comunidade, mais tarde transformado em Voz das Comunidades, quando ainda era pré-adolescente. O jornal migrou para a internet e para as redes sociais e se firmou como referência internacional em publicação de fatos relacionados à periferia que a autointitulada grande mídia não costuma mostrar. No ano passado, entregou um boné com as letras CPX a Lula, então candidato à Presidência, e em menos de uma hora viu-se envolvido numa acalorada trama de desinformação segundo a qual CPX era o nome de uma facção criminosa, ou a forma sincopada da palavra Cupincha - à qual bolsonaristas ensandecidos teimavam em atribuir significado equivalente ao de traficante ou cúmplice. O antídoto? Mais e mais informação real, factual, verdadeira.

Por fim, o humorista Gregório Duvivier, à frente do Greg News, fez-se representar na cerimônia de entrega pelo jornalista e coeditor chefe do programa, Denis Russo Burgierman.

O colorido troféu Audálio Dantas, esculpido por Roger Matua a partir de desenho de Larte, mostra um São Jorge que nocauteia o dragão da maldade utilizando-se de um microfone no lugar da espada e de uma câmera de vídeo acoplada ao quepe. O primeiro jornalista a receber a honraria, quando seu nome era apenas Troféu Indignação, Coragem e Esperança, foi justamente Audálio Dantas, em 2017. Depois de seu falecimento, no ano seguinte, o troféu foi rebatizado com seu nome. Alagoano de Tanque d'Arca, Audálio integra o time dos grandes jornalistas do Brasil, daqueles homens que Brecht chamaria de imprescindíveis. Um porreta. Exímio redator, repórter de faro apurado que encontrou Carolina Maria de Jesus quando cumpria uma pauta na favela do Canindé e editou o primeiro livro dela, "Quarto de Despejo", ainda nos anos 1950, Audálio tinha um dos melhores textos da Revista Realidade nos anos 1960 e venceu o Prêmio Jabuti de 2013 com o livro-reportagem "As Duas Guerras de Vlado Herzog" (Civilização Brasileira).

Quis o destino que Audálio presidisse o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo em 1975, quando Vladimir Herzog, chefe de jornalismo da TV Cultura, foi torturado até a morte no DOI-Codi paulista. O episódio fez com que ele, premido pelas circunstâncias, liderasse a maior mobilização contra a ditadura desde o golpe de 1964. Em seguida, Audálio foi presidente da Federação Nacional dos Jornalistas e deputado federal pelo MDB. Nunca mais se descolou da pauta dos direitos humanos. Em 2016, estivemos juntos na Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo e cuidamos de redigir o relatório final, uma de suas últimas atividades profissionais.

Longa vida ao Troféu Audálio Dantas. E a seu criador, Sérgio Gomes, o Serjão da Oboré.