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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mudança na política de preços da Petrobras é volta providencial ao passado

7.out.2010 - Lula em inauguração de plataforma da Petrobras - Rafael Andrade/Folhapress
7.out.2010 - Lula em inauguração de plataforma da Petrobras Imagem: Rafael Andrade/Folhapress

Colunista do UOL

18/05/2023 04h00

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Meu colega Josias de Souza, também colunista do UOL, afirmou na última terça-feira que o fim da paridade de preços de importação na Petrobras significa uma volta ao passado. Seu argumento é razoável e parte da premissa de que o país não é autossuficiente em derivados de petróleo.

"Como não pode faltar combustível, a Petrobras tem que fornecê-lo e fará isso a preços não competitivos", comentou. Ou seja: "Alguém vai pagar essa conta, que costuma morrer no Tesouro Nacional, portanto no nosso bolso."

A mim, a análise do jornalista é correta, mas carece de perspectiva. Quando o preço do combustível sobe, esse aumento impacta toda a cadeia produtiva de qualquer produto, basta que haja frete de insumos ou mercadorias.

Os custos se avolumam, os preços disparam. Empresas demitem, enxugam, cortam aqui e ali. Mercados reajustam, corrigem, repassam o aumento nas despesas. A conta aumenta, a sacola volta para casa mais vazia, alguns boletos atrasam. Homens, mulheres e famílias inteiras ingressam pela primeira vez nas estatísticas de insegurança alimentar. Alguns até conseguem alimentos, mas já não podem arcar com o preço do gás.

Quem paga a conta? Este ajuste, de uma forma ou de outra, não costuma morrer também no nosso bolso — principalmente no bolso dos menos favorecidos?

Mais do que um celeiro de commodities, essa balbúrdia em que vivemos é um país, um projeto de nação. Ou deveria ser. Tem gente morando aqui. Bocas a alimentar, fraldas que precisam ser trocadas periodicamente, uma cidadania a perseguir, direitos a defender.

A ortodoxia da paridade de preços é linda nas planilhas e nas balanças comerciais. Altiva, correta, elegante. Também é lindo lembrar que o país é o maior exportador de carne e de soja do mundo. Tanta beleza se dissolve quando começamos a desvendar as muitas camadas que o verniz encobre.

O avanço da monocultura de soja pelo país contribui, por exemplo, para que áreas cada vez menores sejam destinadas à produção de alimentos como arroz, feijão ou mandioca. Em muitos estados, a comida precisa viajar por centenas de quilômetros para chegar ao consumidor, uma vez que pouco se encontra além de soja nos desertos do agro onde antes havia roça. E o chato é que ninguém almoça ou janta soja. Nem cana de açúcar.

Esse movimento de especialização das lavouras e expulsão de espécies alimentícias é um dos gatilhos da escalada de preços observada em produtos como o feijão e o tomate. O preço do frete é outro.

Mas o que o agronegócio tem a ver com a Petrobras? Talvez nada. Talvez tudo. Talvez somente a constatação de que certos conceitos divulgados como consenso ou obviedade por parte dos economistas e analistas não são tão consensuais ou óbvios assim.

Os efeitos da paridade de preços no comércio do petróleo, estratégia testada nos últimos seis anos, mostraram-se mais nocivos do que as planilhas do mercado conseguem absorver. E têm a ver com fatores que nem sempre a Faria Lima está disposta a observar.

A maioria prefere sentir orgulho das toneladas de soja exportadas mesmo que rios sejam contaminados, trabalhadores adoeçam, meninas fiquem estéreis e uma horda de brasileiras e brasileiros volte a cozinhar com lenha um punhado de farinha e um naco de palma forrageira.

Josias de Souza disse que a decisão do governo representa um volta ao passado. Fiquei pensando nessa expressão e não pude evitar um sorriso ao constatar que, em muitos aspectos, vivemos de fato uma volta ao passado.

De repente, acordamos todos 20 anos mais jovens. Estamos novamente em 2003, e o litro da gasolina custa menos de 1 dólar nas bombas. Lula vive os primeiros meses à frente da Presidência da República. O maior desafio do Brasil é acabar com a fome. Terras indígenas são homologadas. A Globo divulga novo episódio do programa Linha Direta. Deltan Dallagnol não apita nada. E o Palmeiras tem tudo para vencer o Campeonato Brasileiro -- da série B.
[Pausa dramática para colocar o álbum dos Tribalistas no Spotify.]

Foi Millôr Fernandes quem escreveu, certa feita, que o Brasil tem um longo passado pela frente. Rebobinamos o filme por duas décadas e desembarcamos em 2003, quando a Petrobras ainda não havia adotado a paridade de preços de importação. Não havia vice decorativo nem juiz de primeira instância mancomunado com procurador do Ministério Público a fim de prender políticos de alta popularidade, destruir a indústria da construção civil, abalar as contas da Petrobras e justificar mudanças nas , regras de exploração do pré-sal de modo a contemplar interesses estrangeiros e do grande capital.

Benzadeus, estou até usando expressões como "grande capital", veja você. Josias tem razão. Que volta ao passado, bicho.

E pensar que acabamos de sair de um período em que o projeto de volta ao passado ia ainda mais fundo, rumo ao Brasil de 1964.