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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Brincar de ter escravos é radicalização inaceitável do racismo recreativo

Jogo Simuldor de Escravidão era oferecido na Google Play - Reprodução
Jogo Simuldor de Escravidão era oferecido na Google Play Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

25/05/2023 04h00

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Um jogo eletrônico intitulado "Simulador de Escravidão" (Slavery Owner no original) foi suspenso na loja de aplicativos da Google após uma onda de denúncias, sobretudo nas redes sociais, por parte de parlamentares, usuários e ativistas de direitos humanos.

Desenvolvido por uma empresa chamada Magnus Games — aparentemente de um empreendedor ucraniano chamado Andrej Kardashov —, o game estava disponível havia cerca de um mês na Google Play e chegou a somar pouco mais de mil downloads. Como resultado da reação de parte da sociedade e de ameaças de representação no Ministério Público, o jogo não pode mais ser baixado.

Não, esta não foi uma determinação do Alexandre de Moraes ou do Lula, talquei? Coube ao Google tomar a iniciativa de banir o game. "Não permitimos apps que promovam violência ou incitem ódio contra indivíduos ou grupos com base em raça ou origem étnica, ou que retratem ou promovam violência gratuita ou outras atividades perigosas", afirmou um porta-voz da empresa, em nota, segundo reportagem do Tilt/UOL.

Na aplicação, os poucos comentários publicados eram todos em português, ainda de acordo com a mesma reportagem. Aí vai uma amostra do teor delas: "Ótimo jogo para passar o tempo. Mas falta mais opções de tortura. Poderiam instalar a opção de açoitar o escravo também. Fora isso, o jogo é perfeito!" Outra amostra: "Muito bom, mesmo. Retrata bem o que eu gostaria de fazer na vida real."

'Stamos em pleno mar...

Maio de 2023, internet das coisas e inteligência artificial, blockchain e impressão 3D, e, de repente, Castro Alves pode ser considerado um autor contemporâneo. Simular a escravização de pessoas tornou-se motivo de diversão. "Vou ali dar umas açoitadas num preto e já volto", já pensou? "Tá querendo fugir, negão? Meto um grilhão em você!" Cada comando, um cipó de aroeira, uma corrente, um pelourinho... Será que tem mucama no jogo? "Essa noite eu vou te usar", lembra?

Como costuma acontecer, não demorou para surgirem os indignados às avessas. "É só um jogo!". Não importam o idioma ou as palavras exatas, há sempre uma explicação na ponta da língua. "Era brincadeira" e "foi apenas uma piada" são algumas das versões mais comuns, parentes do "nem todo homem" e do "o mundo está muito chato".

Quem nunca ouviu essas patacoadas?

Repetem-se os mesmos argumentos sempre que há abuso, assédio ou discriminação. Na hora em que a porca torce o rabo, um ato de importunação sexual vira elogio, paquera, galanteio. Ã-hã. Discursos homofóbicos e práticas transfóbicas se perpetuam promovidas a de humor, comédia, irreverência. Não há racismo no Brasil, dizem aqueles que cresceram assistindo a novelas em que personagens negros eram sempre pobres e periféricos - e gargalhando da subalternidade escrachada de Grande Otelo, Mussum, Vera Verão, Tião Macalé.

Hoje, esse racismo tem nome. Irmão siamês do racismo estrutural, o racismo recreativo foi bem categorizado pelo jurista Adilson José Moreira, doutor em direito constitucional por Harvard. Não faltam referências teóricas, massa crítica, conteúdo, sustança, amparo legal e respaldo no direito internacional. Mas haverá sempre um especialista em internet, um proeminente tiozão branquelo com carteirinha da OAF - a Ordem dos Advogados do Facebook - disposto a reivindicar o direito supostamente inviolável de se expressar impunemente, perpetuando a dor, a humilhação, a cultura da segregação.

Era um sonho dantesco... o tombadilho
que das luzernas avermelha o brilho
em sangue a se banhar.

Brincar de feitor, de senhor de engenho, de escravagista, onde já se viu? É lícito gozar com a hipótese das costas em carne viva, deleitar-se com a alegoria do sangue e a projeção do trabalho forçado, amealhar pontos e festejar vitórias a cada prisão, exílio forçado, tráfego ultramarino, a cada estupro, a cada ferida produzida?

"O melhor simulador de proprietário de escravos para Android", dizia a página do game. "Compre e venda escravos, ganhe dinheiro, promova reformas." Quem mais? "Compre e venda escravos no mercado." "Seja um proprietário de escravos brutal ou promova reformas." "Neste simulador de proprietário de escravos, você pode fazer o que quiser." Alvíssaras!

Muitas linhas abaixo, um alerta: "Condenamos a escravidão no mundo real. Este jogo é feito exclusivamente para entretenimento". Ufa! Já podemos dormir descansados.

Todo simulador produz estímulos. É para isso que eles são feitos. Antes mesmo de questionar a legalidade ou a conveniência de um jogo como este, o que deveria nos preocupar é notar que essa aplicação foi pensada por alguém, desenvolvida por outros e baixada por centenas que compartilham o sentimento de que colecionar escravos e castigá-los é algo divertido, um passatempo formidável. Uma percepção estarrecedora.

Não faz muito tempo, vimos no cinema um filme no qual um grupo de estrangeiros vinha ao Brasil para se divertir. Como? Organizando um safári para matar pessoas — quase todos pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres — num vilarejo fictício do Nordeste batizado de Bacurau.

Era só um jogo.