Black Is King: Preto é pra brilhar, na periferia ou em Hollywood
Os rostos cintilantes de Marylin Monroe, Madonna, Taylor Swift; os olhos azuis faiscantes de Alain Delon, Frank Sinatra, Bradley Cooper. A pedagogia hollywoodiana nos ensina há cem anos que humanos podem se tornar superpessoas, e os nomes citados aqui são exemplos desses seres mágicos tocados pela varinha do glamour.
Com essas atrizes e atores, cantoras e bailarinos, aprendemos — fosse em Jaipur, Cabrobó ou Miami — que era possível viajar para outros mundos, contracenar com desenhos animados, dançar sob a chuva em ruas desertas. Aprendemos, em síntese, a sonhar.
Os rostos sofridos de Hattie McDaniel, Viola Davis, Lupita Nyong'o; os olhos lacrimejantes de Sidney Poitier, Forest Whitaker, Mahershala Ali. A mesma escola baseada em Hollywood também foi importante para ensinar ao mundo alguns lugares "comuns" às pessoas negras.
Com elas e eles, entendemos que as possibilidades de felicidade, do desejado glamour e do sonho eram quase nulas. Estas limitações e interdições, sabemos, não eram apenas simbólicas: McDaniel, primeira negra a ganhar, em 1940, um Oscar por seu papel em E o Vento Levou (do qual não pôde comparecer à estreia), tinha um pedido pós-morte: ser enterrada no cemitério Hollywood Forever. Morta, foi novamente barrada: o cemitério só aceitava brancos.
O debate provocado pela coluna da antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz a respeito do lançamento do álbum visual Black is King, de Beyoncé, nos mostra como a cultura popular massiva, fundamental em nossas relações sociais, foi eficiente em estabilizar quem pode ou não acessar o idílico, o luxo, o lado bom dos holofotes.
Quando negros do hip hop aparecem com seus grandes colares de ouro, quando MC Loma surge sentada em um trono ou quando Beyoncé dança coberta de dourado, pompa, brilho e cristal, nossas imagens internalizadas e cristalizadas do sofrimento e dos olhos lacrimejantes entram em pane. Não crescemos vendo negros felizes, ricos e autônomos, afinal de contas.
A periferia também quer brilhar
Esse estranhamento, percebam, também tem relação vital com outro fator: classe.
É preciso lembrar que, no Brasil, pobreza e cor estão fundamentalmente associados: negros formam 75% entre os mais pobres, enquanto brancos formam 70% entre os mais ricos (dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019).
Enquanto o debate crescia nas redes sociais por conta da coluna, lembrei bastante de uma cena do filme Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes. Nela, um rapaz fala para um assombrado cineasta sobre os modelos de calças e shorts jeans mais procurados pelo público. "Tem que ter brilho", afirma ele, enquanto vemos as peças sapecadas com pedrarias que logo serão vendidas para o popularíssimo mercado de Toritama, cidade do Agreste de Pernambuco.
Os jeans brilhantes vestidos em sua maioria por pessoas que tentam esticar o salário até o fim do mês também nos remetem à famosa frase "pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual", atribuída tanto ao carnavalesco Joãosinho Trinta quanto ao jornalista Elio Gaspari.
Em que se pese o certo folclore e o tom essencialista da máxima, esses testemunhos nos indicam outras possibilidades de existência e de desejo por parte de milhões de brasileiras e brasileiros. Mais: jogam luz em uma percepção redutora e estereotipada que muitas vezes jornalistas e pesquisadores, elite e classe média, internet e programas de TV, possuem da periferia.
A periferia, vejam só, não é necessariamente indigna, não é necessariamente triste, não necessariamente fala aos berros. É também um espaço no qual ocorre a felicidade. E, sim, deseja brilhar, como a maioria dos seres humanos nascidos sobre a terra.
("Se eu estou brilhando, todo mundo vai brilhar", canta a maravilhosa Lizzo).
O peso das celebridades na cultura
A visão pouco ampla se estende a outro tópico essencial do debate: as celebridades. Tanto a elite cultural (à direita, centro e esquerda) quanto a academia, torceram historicamente o nariz para o tema. Era coisa de jovem, de gay, de dona de casa, de amantes da fofoca. Coisa de quem não se interessa pelos problemas "reais" da nação e não entende de política.
Coisa, percebam, de gente que não ocupa os espaços mais privilegiados de poder. Mas a temperatura da discussão provocada pelo texto nos mostra bem que a política é um assunto que está no cotidiano, nas cozinhas, filas de ônibus, nos salões de beleza. Mostra que as pessoas cuja fama é o grande capital — e cujo capital é gerado pela fama — articulam como poucas, por conta de suas visibilidades, questões de gênero, de raça, território e classe, mesmo quando suas aparições não almejam este propósito.
Celebridades, já foi dito, são algumas das moedas culturais mais preciosas da sociedade contemporânea, estejam nuas, de manto ou vestidas com estampa de oncinha. Aprendemos também através delas a conceber o mundo, o que pensar, fotografar, falar e escrever sobre as pessoas dos Estados Unidos, da América Latina, da África, etc.
Essas aulas foram muitas vezes escritas não com giz, mas justamente com o cristal e o glamour reservados a uns e não a outros. Essa distinção faz enorme diferença. Assim, se foi com esses materiais que aprendemos a ter uma certa compreensão do espaço que nos cerca, a tal didática hollywoodiana pode nos ajudar também a remoldar percepções, a reinstalar novos códigos em nosso racista e classista arcabouço cultural.
Ou seja: a luta antirracista também pode ser feita com pompa, artifício hollywoodiano e brilho — aliás, Hollywood, que não é boba nem nada, tem se capitalizado com isso através de uma muitas vezes superficial concepção de representatividade.
Lugar do preto e lugar do branco
Para completar, é preciso falar de outro ponto inflamado não só pelo texto de Lilia, mas por todo necessário debate que o cerca (as declarações de figuras públicas como Iza, Preto Zezé, por exemplo): o conforto com o qual pessoas brancas dirigem seus imperativos e orientações a pessoas negras.
Dizer o que nós devemos fazer, seja sair da sala de jantar (palavras da antropóloga) ou nos esforçar mais para compreender até mesmo nossa própria negritude (palavras da edição) são apenas exemplos de práticas cotidianas comuns, mas nem por isso menos racistas. Algo fortemente derivado de uma sociedade na qual até hoje os espaços de servidão são majoritariamente negros, uma herança escravista.
Essa realidade também é formada pela distinção entre o fazer e o pensar, com o primeiro verbo sendo associado aos de pele escura, enquanto o segundo é relacionado à pele clara.
É algo tão "natural" que, mesmo uma pesquisadora com uma importante contribuição teórica sobre as questões raciais no Brasil — seu livro Retrato em Branco e Negro é, para mim, um excelente documento para entender o jornalismo brasileiro — comete o ato sem identificar nele uma assimetria.
Também deve nos fazer pensar a respeito de uma academia branca e pretensamente universal que, durante séculos, se trancou em sua famosa torre de marfim, seus gabinetes refrigerados e, claro, salas de jantar para falar do mundo lá fora. Este distanciamento — que não se traduz em pesquisas diversas, inclusive as da própria antropóloga — vem sendo felizmente modificado a partir do próprio contexto acadêmico, que passa por suas negras revoluções.
PS: Esta é a primeira de uma série de colunas que passo a assinar aqui no UOL. Neste espaço, discuto cultura e política, política e cultura. Mandem sugestões de temas, pitacos, conversa. Cancelo somente quem não gosta de farofa. Saravá.
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