O dia em que Kamala Harris encontrou o interior de Pernambuco
O que Kamala Harris, Dilma Rousseff, Zezé Parteira e Espedita Quilombola possuem em comum além do óbvio fato de serem mulheres?
Elas — nos salões do Senado em Washington, na Praça dos Três Poderes em Brasília ou no legislativo de Caruaru e Betânia, ambas no interior de Pernambuco — ultrapassaram uma barreira de barbas, ternos e gravatas e se tornaram as primeiras mulheres a ocupar específicos postos políticos eletivos. A ver:
Kamala será provavelmente a primeira vice-presidente dos Estados Unidos — até agora, não há nenhum sinal de fraude por lá, apesar de o Presidente Laranja estar tentando ganhar no tapetão.
Dilma foi eleita duas vezes, a segunda com 54.501,118 milhões de votos. Em 2016, a primeira presidente da história do Brasil não terminou o mandato porque o Congresso Nacional decidiu que uma manobra realizada por nossos presidentes anteriores era suficiente para tirá-la do poder.
Já Zezé, há 45 anos colocando os filhos e as filhas das comunidades rurais de Caruaru no mundo, foi a primeira mulher eleita vereadora em uma cidade fundada há 163 anos. Gastou R$ 21 na campanha (preço de sua foto oficial) e virou história.
Espedita é outra pioneira: a sertaneja é a primeira de sua comunidade quilombola a entrar no legislativo de Betânia, a quase 500 quilômetros de Recife. Lá, sua presença destemida causou estranheza entre os políticos que viam as áreas quilombolas como um bom manancial de votos — para eles, é claro.
Hoje, 77.649.569 milhões de mulheres — ou a maioria do eleitorado brasileiro, 52,49% — poderão ir às urnas escolher os próximos prefeitos e vereadores de suas cidades. Melhor: elas podem escolher as suas próximas prefeitas e vereadoras, uma distinção de gênero importantíssima que fez, por exemplo, com que Biden e Kamala alcançassem a maioria dos delegados nos EUA.
Gargalhadas em Taquara de Cima
Zezé e Espedita, eleitas pelas primeira vez em 2016 e novamente candidatas, estão longe da visibilidade e do poder da vice-presidente eleita nos EUA, mas ambas também fazem parte de um redesenho que aos poucos vai avançando no Brasil — e um bocado nos seus interiores.
Nele, cabem mulheres vindas de classes populares, pretas e com grande experiência junto às suas comunidades. São "personagens" bem distantes dos que nos acostumamos a ver nos santinhos e propagandas.
No Agreste pernambucano, Maria José Galdino ou Zezé Parteira ou Mãe Zezé dá uma de suas famosas gargalhadas quando pergunto quanto tempo ela, que continua atendendo a comunidade de Taquara de Cima enquanto atua na Câmara e faz um parto lá e cá, consegue dormir. "Olhe, umas três, quatro horas, viu?", fala ao telefone, apressada, enquanto ouvimos diversas vozes ao seu redor. Parecia uma repartição pública, mas era sua casa.
Me interessa saber como ela passou esses primeiros quatro anos de vida pública institucional, para mim uma lógica bastante diferente daquela que ela administrava no seu cotidiano de banheiras, macas e cordões umbilicais — a vereadora, eleita com 945 votos, realizava uma média de 45 partos anuais.
Entre o Galego das Lajes e o Allyson da Farmácia
Zezé — outra gargalhada — subverte um pouco minhas expectativas quando coloca a Câmara na mesma régua de sua vida de agente de saúde comunitária, título que recebeu em 2002 já após uma vasta atuação ajudando mulheres pobres a parir. Tinha 18 anos quando ajudou no primeiro parto.
"Vinha alguém pedir dinheiro para ultrassom, para comprar remédio? E aí, agora que eu tenho [dinheiro], ficou mais fácil". O salário da vereadora eleita pelo PV em 2016 é de R$ 7 mil mensais.
Zezé assegura que os quatro anos vividos entre os 23 homens que compõem a Câmara dos Vereadores foi tranquilo.
Ela gargalha e fala, não necessariamente nessa ordem: "tenho problema não, a gente até pensava que era tudo um partido só". Assim, de requerimento em requerimento, foi convivendo com rapazes como Galego das Lajes, Edjailson da Caru Forró, Duda do Vassoural e Allyson da Farmácia. Nesse meio tempo, trocou de partido — agora concorre pelo PSDB — e diz que faria tudo de novo. "Eu estava acostumada a conviver com homens."
Ovo de pata com leite condensado
Não só isso: Zezé, assim como Espedita (já chegaremos nela), é também uma presença sociologicamente significativa no espaço da política institucional por vir de uma origem que não podia ser classificada nem de classe média baixa ou mesmo pobre.
"Quando eu nasci, em Catolé do Rocha, na Paraíba, meu berço era na verdade um buraco no chão", conta ela, filha de pai vaqueiro e mãe também parteira. Zezé, nascida em 1957, era uma criança quando engravidou pela primeira vez: tinha apenas 12 anos de idade. Dos cinco filhos, três morreram. Me fala que terminou criando 10: os outros foram "crianças da comunidade".
Para cuidar deles — e de si — manteve um hábito interessantíssimo: uma fórmula poderosa contra anemia e outros males que, fui fuçar na internet, tem diversos adeptos e variações, uma delas com Biotônico Fontoura. "Eu pego três ovos de pata, uma lata de leite condensado, vinho do Padre, canela. Misturo tudo e enterro durante três dias. Depois tiro e deixo descansando um dia e tá pronto. Eu trabalho com médico, mas não gosto de tomar remédio não".
Espedita "já fazia política e não sabia"
A quase 230 quilômetros de Caruaru está Espedita Maria dos Santos Souza, ou Espedita Quilombola, outra novata no Legislativo que hoje tenta se reeleger. Ela, ao contrário de Zezé, não teve o mesmo cotidiano tranquilo na Câmara — mas isso não foi um problema.
Escolhida para representar quatro comunidades quilombolas (Sítio da Baixa, Bredos, Teixeira e Sítio São Caetano), Espedita ingressou formalmente em um campo que não lhe era exatamente estranho. "Eu não queria entrar na política, mas a verdade é que eu já fazia política há muito tempo e não sabia".
A trilha começou em casa: seu pai , apesar de não ter seguido uma educação formal, era inteligentíssimo e se envolvia com o cotidiano quilombola: ajudava a comunidade a conseguir atendimento de saúde (às vezes bastante precário em áreas rurais), participou da criação das primeiras associações de moradores, organizava documentação para quem precisava resolver questões burocráticas.
Espedita, agora com 48 anos, observava e aprendia. Começou a acompanhar a pisada paterna e não foi difícil entender o tanto da mescla abandono e exploração política que castigava aquelas quatro comunidades.
Vida de político
Até então, não havia demarcação de terras quilombolas no país, o que aconteceu por decreto em 2003, no governo Lula. A decisão só foi declarada constitucional em 2018 pelo Supremo Tribunal Federal. O DEM, então PFL, moveu ação contra o decreto quando ele foi publicado.
"Quando me escolheram para ser candidata eu parei e fiz uma reflexão. Eram duas políticas diferentes: aquela pública, que eu fazia, e a partidária. Eu tive que me fortalecer para me manter na Câmara, para ter voz. Você precisa ser forte".
À altivez e articulação de Espedita veio o backlash: vários de seus projetos, a maioria com pedidos voltados para sua comunidade, eram barrados. Fazendo oposição ao governo municipal local, ela foi aprendendo que era preciso muito jogo para não parecer, lá fora, que a falta de ações nas comunidades quilombolas eram uma desatenção sua.
Dois dos problemas mais presentes na Betânia de 12.500 habitantes — e mais ainda na sua área rural — são o acesso a água e as péssimas condições das estradas vicinais. Alimentação precária — ou insegurança alimentar — completam o pacote.
"Você precisa ligar para um, falar com outro. Eu não tinha esse olhar político-partidário, foi algo que aprendi nestes 4 anos. É preciso observar e tomar cuidado. Hoje, as pessoas me cobram mais". Espedita foi eleita em 2016 pelo PSB. Hoje, integra o PSD.
Quilombolas não caem exatamente no gosto do presidente
Se for eleita por mais quatro anos, já sabe que a rotação do LP vai ser maior que em 2016: a atenção a áreas quilombolas é enorme no governo Bolsonaro, mas não no sentido positivo.
Em março deste ano, em um evento em Miami (EUA), o presidente disse que demarcações são "invenção da esquerda para atrapalhar o Brasil" e barrou os 900 novos pedidos de demarcação que esperam, cheios de poeira, uma ação do governo federal.
Vale lembrar ainda como o presidente vê as pessoas que vivem nestas áreas: em um evento no Clube Hebraica no Rio de Janeiro, 2017, ele disse que um "quilombola pesava sete arrobas", medida usada para pesar animais, e "que não serviam nem para procriar".
O cenário é um tanto delicado para Espedita, que integra agora o PSD de Gilberto Kassab, aliado do governo federal depois que Fábio Faria tornou-se o nome à frente do "recriado" Ministério das Comunicações.
Vai ser preciso observar — e tomar cuidado.
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