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Fabiana Moraes

Nas eleições, conservadores aderem ao que antes chamavam de "mimimi"

A ex-deputada estadual Terezinha Nunes (MDB) em frente ao hospital onde menina de dez anos fez aborto legal no Recife - Reprodução
A ex-deputada estadual Terezinha Nunes (MDB) em frente ao hospital onde menina de dez anos fez aborto legal no Recife Imagem: Reprodução

04/10/2020 04h02

Agosto de 2020. Na porta do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, a ex-deputada estadual Terezinha Nunes (MDB) usava um look que poderíamos chamar de futurístico apostólico romano: máscara, protetor facial transparente e uma camiseta trazendo a imagem de Nossa Senhora.

Perto, dezenas de pessoas se dividiam entre orações e gritos de "assassina". Lá dentro, estava a menina de apenas dez anos, estuprada pelo tio desde os seis, que engravidou e veio até a capital realizar um aborto legal.

"Estive lá para discutir a questão com a família e a equipe médica, mas um grupo abortista fez barulho e até me atacou verbalmente", declarou então Terezinha à jornalista Letícia Lins.

Sim, as dezenas de pessoas ali presentes queriam "discutir a questão" com uma família em choque que já passara meses reunida com médicos, advogados, assistentes sociais.

Queriam "discutir a questão" em um caso duas vezes permitido de acordo com a legislação brasileira desde 1940: interrupção da gravidez decorrente de estupro e interrupção da gravidez que traz risco de morte à mãe. O "grupo abortista" defendia o cumprimento da lei.

Toda trabalhada no discurso da coletividade

Setembro de 2020. Terezinha abandona o look futurístico apostólico romano, está sem máscara, protetor facial e veste um feérico rosa. Na fotografia, ela integra um colorido time de mulheres, duas delas negras, uma cadeirante.

É a imagem da chapa Inclusivas, candidata ao cargo de vereadora e formada pela ex-deputada e ainda por Germana Soares, Cibelle Albuquerque e Carolina Aleixo, todas ligadas a necessárias lutas por políticas públicas voltadas a pessoas com microencefalia, deficiência física e autismo.

A candidata conservadora agora trabalhada no discurso da coletividade é um exemplo que se repete no pleito de 2020, quando um boom de grupos de direita surgiu ineditamente se apresentando a cargos eletivos.

"A democracia brasileira está atrasada anos-luz em relação a avanço social, a estrutura política impede o surgimento de novas lideranças, pois muitos grupos não possuem força política", comenta Terezinha sobre a escolha inédita na formação da chapa coletiva.

Chapa coletiva -- uma análise de forma e conteúdo

Chama atenção neste sentido que nenhuma das outras integrantes seja a cabeça de chapa (só uma pessoa pode efetivamente ocupar o cargo de vereadora), e sim a candidata três vezes eleita deputada estadual. Ela tentou novamente o cargo em 2018 pelo PSDB, mas não foi eleita.

"Tenho mais experiência política, recursos do fundo partidário. Elas sempre diziam que não conheciam ninguém, que os partidos não iam abrigá-las. Passei tempo tentando convencê-las. Se dependesse delas, não ia sair a candidatura."

Incomodada com as críticas sobre a incoerência entre o episódio do aborto e o mote coletivo e feminino de sua chapa, Terezinha apresentou outra explicação, diferente daquela dada no dia dos "protestos: "Eu fui para conter o pessoal da igreja católica que estava lá. Soube que estavam tentando invadir o hospital. Também procurei falar com as feministas. Era uma esculhambação. Não fiquei nem dez minutos lá. Detesto fundamentalismo".

No entanto, a discussão aqui não deve ser só de forma, mas de conteúdo: além do modelo coletivo, é possível identificar a afeição de legendas conservadoras por questões de raça e gênero. Se antes tais assuntos eram vistos como apolíticos, verdadeiros "mimimis" (é violentamente inesquecível a imagem do deputado estadual Rodrigo Amorim e do deputado federal Daniel Silveira, ambos do PSC, quebrando a placa com o nome de Marielle Franco, no Rio de Janeiro), hoje eles surgem como ativos com vasta possibilidade de serem trabalhados pela direita - a seu modo, é claro.

"Meu pai é pernambucano"

"As candidaturas coletivas são uma das grandes inovações de nossa política e podem ser, é claro, formadas por pessoas de esquerda, centro ou direita. Mas chama atenção de fato a apropriação da direita por formato e pautas que são indiscutivelmente ligadas à esquerda no Brasil", diz a cientista política Priscila Lapa, para quem a adoção de candidaturas coletivas e/ou pautas "identitárias" por parte de legendas conservadoras é antes de tudo um movimento pragmático.

Essa afirmação encontra respaldo, por exemplo, na recentíssima decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de aplicar, já este ano, a regra para distribuição proporcional de recursos dos fundos eleitorais e do tempo de propaganda eleitoral na TV para candidatos negros. Resultado: 25.911 postulantes a cargos de vereador, prefeito e vice-prefeito que concorreram em 2016 alteraram a raça para esta eleição.

Deste número, 10.454 que se declaravam brancos agora afirmam ser pardos ou pretos.

É bastante interessante acompanhar o caso de alguns nomes como o de Caio Miranda Carneiro (DEM-SP): antes declarado branco, agora pardo, ele disse que levou bronca dos pais porque não estaria reconhecendo suas raízes. "Meu pai é pernambucano, nordestino", explicou. Permitam-me aqui uma pequena informação pessoal: a minha mãe também é pernambucana, mas, assim como parte da população local, é branca.

Pode parecer espantoso para muitos, mas tem gente galega, japonesa, indígena, cafuza, cabocla, preta e etc. nos nove estados nordestinos.

Questão de gênero

Além da questão raça, o gênero foi outra pauta fagocitada das mais variadas formas no ambiente político — e os escândalos públicos a respeito das candidaturas laranjas do PSL mineiro e pernambucano no ano passado são apenas a ponta desse iceberg (aproveitaram-se financeiramente da cota de 30% de mulheres prevista legalmente em cada chapa).

Para se ter ideia, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições municipais de 2016 16.131 candidatos não tiveram nem um voto sequer — ou seja, nem o próprio. De cada dez destes "sem-votos", nove eram mulheres (14.417 candidatas).

É da manutenção dessa realidade que Priscila Lapa fala: ao simplesmente trazer negros ou mulheres para suas legendas, os partidos podem até marcar o quadradinho da "representação", mas isso não significa que estas candidaturas sejam efetivas no que tange à melhoria das vidas das pessoas que estes candidatos supostamente representam.

"Devemos eleger mais mulheres para cargos políticos, por exemplo. Mas devemos votar mesmo naquelas que miram um retrocesso para seu próprio gênero?".

Ficam no ar os gritos e orações em frente ao Cisam.