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Felipe Moura Brasil

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

O barco furado do presidente

Colunista do UOL

06/08/2021 04h00

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Em 25 de abril de 2019, Jair Bolsonaro endossou a atitude de André Mendonça de assinar parecer favorável à legitimidade do inquérito aberto por Dias Toffoli no STF, do qual o próprio presidente da República viria a se tornar alvo por ameaçar as eleições:

"Eu parti em defesa do advogado-geral da União, que tem obrigação de defender a União, e ele defendeu o direito garantido em regimento interno do Supremo Tribunal Federal de eles abrirem inquérito. Foi isso que aconteceu. No mais, pelo que me consta, voltou atrás o Supremo dessa decisão, e segue o barco. Agora vamos tocar o barco", disse Bolsonaro na ocasião, minimizando a repercussão negativa da censura imposta pelo relator Alexandre de Moraes a uma reportagem que revelava o codinome usado por Marcelo Odebrecht para se referir a Toffoli: "amigo do amigo [Lula] de meu pai [Emílio]".

Em 3 de abril, 22 dias antes, o AGU escolhido pelo presidente (mesmo tendo organizado um livro em homenagem aos dez anos de Toffoli no STF) havia escrito que "a interpretação regimental é matéria sujeita ao juízo dos próprios integrantes do tribunal". Como o artigo 43 do regimento interno do Supremo só prevê abertura de inquérito de ofício se ocorrer infração à lei penal "na sede ou dependência do Tribunal", Mendonça alegou, como um burocrata cumprindo seu papel, que a interpretação feita por Toffoli "não desconsidera a referência espacial", "mas enfatiza que a sua literalidade não exaure as responsabilidades administrativas" do então presidente do STF, "sobretudo nas hipóteses em que estejam sob ameaça as prerrogativas institucionais do Tribunal".

Em outubro de 2019, Augusto Aras, escolhido em setembro por Bolsonaro como procurador-geral da República, também defendeu a abertura do inquérito como "atuação legítima do Supremo para apuração de fatos supostamente criminosos aptos a lesionar o funcionamento da Corte". Esses fatos, nas palavras de Toffoli, seriam "notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações" que atingissem "a honorabilidade e a segurança" do STF, de seus "membros e familiares".

Entre as defesas de Mendonça e Aras, ainda houve outro episódio curioso: em 15 de julho, Toffoli acolheu pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro e suspendeu todas as investigações em curso no país que tivessem como base dados do Coaf (como a da rachadinha de Flávio) e da Receita Federal (como as apurações sobre as esposas de Gilmar Mendes e do próprio Toffoli, depois enterradas por decisão de Moraes no âmbito do inquérito das fake news). Em contrapartida, Jair e Flávio Bolsonaro atuaram para blindar Toffoli, pressionando senadores (como foi relatado em detalhes por Major Olímpio e Selma Arruda, ambos então no PSL) pela retirada de assinaturas do requerimento de instalação da CPI da Lava Toga, que investigaria o ministro do Supremo, entre outras frentes, por ter aberto o inquérito agora defenestrado pelo presidente.

"Ainda mais um inquérito que nasce sem qualquer embasamento jurídico, não pode começar por ele [pelo STF]", declarou o mesmo Bolsonaro que destacava dois anos atrás o "direito garantido" em regimento interno para o referido nascimento e que premiou André Mendonça com uma indicação ao Supremo. "Ele abre, apura e pune? Sem comentário. Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está, então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas da Constituição", ameaçou.

Eu, Felipe, critiquei a interpretação elástica do artigo 43, a falta de objeto definido, o puxadinho no sistema acusatório e a blindagem de ministros contra verdades e apurações incômodas; embora tenha feito a distinção entre os vícios que contaminaram o inquérito desde a sua raiz e a necessidade de punir reacionários bolsonaristas por ameaças e atos de delinquência. Já Bolsonaro, que prefere abraçar o amigo de Lula no STF a melindrar seu aliado na frente ampla pela impunidade, só esperneou (e, ainda assim, poupando Toffoli) quando sua claque e ele próprio se tornaram alvos.

Agora vamos tocar o barco, presidente.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL