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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O saldo de Moraes, Telegram e Bolsonaro

Colunista do UOL

22/03/2022 10h04

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1) Os fatos:

- Alexandre de Moraes atendeu a um pedido da Polícia Federal e determinou em 17 de março de 2022, quinta-feira, a suspensão completa e integral do funcionamento do Telegram no Brasil, até "o efetivo cumprimento das decisões judiciais anteriormente proferidas nestes e em outros autos" de relatoria do próprio ministro do STF.

- Segundo Moraes, pessoas físicas e jurídicas que burlassem o bloqueio poderiam ser multadas em até R$ 100 mil por dia.

- A determinação veio a público na sexta-feira, 18 de março.

- As decisões não cumpridas pela plataforma eram a retirada de um link do canal de Jair Bolsonaro para um documento de inquérito sigiloso vazado pelo presidente, bloqueios de perfis de um blogueiro de crachá que foi alvo de mandado de prisão e se mandou para os EUA, a suspensão de sua monetização, o fornecimento de dados sobre os ganhos auferidos, bem como esclarecimentos "sobre todas as providências adotadas para o combate à desinformação e à divulgação de notícias fraudulentas, incluindo os termos de uso e as punições previstas para os usuários que incorram nas mencionadas condutas".

- O Telegram ainda havia deixado de indicar para o STF "sua representação oficial no Brasil (pessoa física ou jurídica)".

- Intimada no mesmo dia 17, a plataforma, por meio de seu fundador, Pavel Durov, pediu desculpas ao STF no dia 18, alegou que as comunicações do Supremo estavam chegando a endereços eletrônicos não acessados, informou o cumprimento parcial das medidas determinadas e solicitou que o STF considerasse "adiar sua decisão" de suspensão "por alguns dias", enquanto as demais providências eram tomadas.

- Moraes considerou "necessário o cumprimento integral" das medidas para que fosse "afastada a decisão de suspensão proferida em 17/3/2022". Mas, considerando o atendimento parcial, concedeu prazo de 24 horas para o Telegram cumprir as medidas faltantes.

- O Telegram informou, dentro deste prazo, o cumprimento das medidas, de modo que Moraes suspendeu no domingo a determinação do bloqueio, que não chegou a ser efetivado em massa, já que estava previsto para ter início na segunda-feira, 21 de março.

- Entre as medidas, a plataforma nomeou o advogado Alan Campos Elias Thomas como represente legal no país e avisou que passou a monitorar não só o noticiário nacional na imprensa e em outras redes sociais, mas também, todos os dias, os "100 canais brasileiros mais populares", que "respondem por mais de 95% de todas as visualizações de mensagens públicas do Telegram no Brasil".

2) Análise dos fatos:

- O Telegram, como qualquer outra empresa, tem de respeitar a legislação brasileira para atuar no país; e recursos contra decisões judiciais devem ser feito nos termos da lei.

- Diante da falta de respostas da plataforma aos comunicados do Poder Judiciário, ela precisava ser impelida a responder. A questão é qual medida deveria ter sido aplicada.

- Não se pode negar que o Telegram respondeu e tomou as devidas providências após a suspensão ter sido determinada por Moraes e antes de que ela acontecesse de fato, o que é um saldo positivo. Mas os fins deveriam justificar os meios (e, portanto, os precedentes) arriscados e extremos?

- Em primeiro lugar, fica outra pergunta: a resposta se deu em razão do temor do peso e das potenciais consequências da decisão, ou de a plataforma ter sido comunicada, dessa vez, por algum meio realmente acessado pelos seus responsáveis, incluindo aí a própria repercussão midiática da suspensão determinada pelo ministro? Este ponto não está claro nos autos.

- Em uma nota, o Telegram alegou que só encontrou e-mails da PF, não do STF; em outra, que havia pedido ao STF em fevereiro para usar outro e-mail para comunicações futuras, o que não ocorreu, e que agora, por sorte, encontrou uma decisão do Supremo do início de março que continha solicitação de remoção. Ou seja: não ficou clara a ordem dos acontecimentos, nem o que teria feito a plataforma tomar ciência dessa vez - o que deixa no ar a hipótese de enrolação, aparentemente relevada pelo ministro diante do manifesto desejo de colaboração a partir de agora e do possível erro passado do próprio STF em não ter seguido a alegada orientação para alterar o e-mail de destino.

- Dito isso, Moraes precisava ter recorrido, neste momento, a uma medida tão gravosa, que prejudicaria "dezenas de milhões" de usuários brasileiros não envolvidos nas decisões pendentes, como apontou Durov ao pedir mais tempo para cumpri-las?

- Eu, Felipe, considero que não. Que somente a recusa deliberada de adaptação ao arcabouço legal do Brasil justificaria a referida suspensão. Moraes poderia, além de ter buscado endereços alternativos de comunicação, ter aplicado medidas menos gravosas e mais individualizadas, aumentando o peso delas em caso de necessidade, antes de recorrer à determinação drástica de bloqueio, com potencial prejuízo de terceiros.

- Ainda que mencionasse a suspensão, o ministro poderia ter estabelecido desde a primeira decisão do dia 17, não só a partir do atendimento parcial, um prazo para cumprimento das decisões pendentes, somente depois do qual o bloqueio valeria, em caso de recusa ou omissão.

- Ainda que recorresse à ameaça de suspensão, porém, Moraes poderia ter afetado a questão ao plenário, para deliberar com os colegas sobre tamanhas consequências.

- Se não havia, no entanto, sequer a certeza de que o Telegram acessava as comunicações do STF (e diante da aceitação da alegação da plataforma, conclui-se que Moraes a considerou plausível), até a ameaça de bloqueio soa exagerada, por mais que se compreenda a vontade do ministro de se impor desde já contra tentativas sorrateiras de manter a desinformação em andamento, uma vez que vai assumir o TSE em agosto para o período eleitoral.

- Em vez disso, ou antes, Moraes poderia ter simplesmente ameaçado (no sentido de conceder prazo para cumprimento, antes de efetivar a punição) a aplicação de multas pesadas ou demais alternativas pontuais, mas também incômodas, lembrando que, embora o Telegram mantenha servidores nos Emirados Árabes, o Brasil conta com acordos de cooperação internacional.

- Ainda que a suspensão tenha provocado as devidas providências, elas talvez pudessem ser igualmente alcançadas sem o potencial comprometimento de outras pessoas e atividades, nem tamanho estardalhaço jurídico e político sobre o cunho censório de decisões monocráticas do STF, nem a abertura de precedentes para a retirada do ar de qualquer plataforma, ou empresa de telefonia, diante da demora em cumprir decisões.

- De resto, o bolsonarismo mostrou sua hipocrisia, ao atacar como censura a decisão de Moraes contra o Telegram, dias depois de defender a censura do governo Bolsonaro ao filme de 2017 de Danilo Gentili. Neste caso, aliás, o MPF pediu a derrubada da censura, expondo os mesmos argumentos técnicos que expus no Twitter, no Instagram e no Youtube.

- Atualmente, Moraes se limita a enquadrar os propagandistas de Bolsonaro e seus facilitadores, porque o STF descartou o impeachment e se acertou com o presidente, que topou compactuar com a impunidade da classe política tocada na Corte, depois que sua família virou alvo de investigações, inclusive por desvio de dinheiro do povo em gabinetes.

- Bolsonaro e seus filhos blindaram Dias Toffoli contra a CPI da Lava Toga, esvaziaram pressões da suposta direita contra a blindagem geral, e até hoje são blindados por ministros do STF (alguns dos quais querem o presidente como adversário a ser batido por Lula no segundo turno). A família apenas aproveita a sanha de Moraes para fingir às suas massas de manobra que polariza com o Supremo e que defende a liberdade de expressão e de crítica, quando defende a impunidade e a desinformação.

- No saldo do presente episódio, Moraes conseguiu o que queria do Telegram, mas alimentou a propaganda bolsonarista; e os Bolsonaro ganharam mais de 150 mil inscritos na plataforma (sabe-se lá se reais ou fakes), mas, caso as medidas sejam bem implementadas, podem ter perdido, também nela, a liberdade total de desinformar que já haviam perdido em outras.