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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ambiguidades e ressentimento com os EUA marcam visita de Bolsonaro à Rússia

Reunião entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente russo Vladimir Putin em Moscou, na Rússia - Oficial Kremlin/PR
Reunião entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente russo Vladimir Putin em Moscou, na Rússia Imagem: Oficial Kremlin/PR

Colunista do UOL

17/02/2022 04h00

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A visita do presidente brasileiro Jair Bolsonaro à Rússia capturou boa parte de nossa atenção nos últimos dias. Com razão, inúmeros analistas compartilharam suas preocupações sobre o tom e o teor do encontro, que ocorreu em meio às incertezas da crise entre Rússia, Ucrânia e os países membros da OTAN.

Brasil e Rússia mantêm relações diplomáticas desde 1828, com particular ampliação de trocas bilaterais a partir dos anos 1980. Todos os presidentes brasileiros que antecederam Bolsonaro, nesse século, de FHC à Temer, visitaram Putin e mantiveram relações amistosas com Moscou. Além de integrarem os BRICS, Brasil e Rússia mantêm, ao longo de sua história, experiências bem-sucedidas de cooperação de alto nível, sobretudo no campo econômico e tecnológico.

Ao descrever os interesses brasileiros que estariam sobre a mesa no encontro com Putin e demais autoridades, Bolsonaro enfatizou três dimensões: 1) a cooperação em defesa e segurança; 2) a intenção de ampliação do comércio; 3) e o diálogo sobre aspectos regionais.

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No primeiro desses eixos, o foco esteve em buscar apoio russo para o pleito do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, além de abrir espaço para cooperação de inteligência, como assinar um Protocolo sobre Proteção de Informações Classificadas, por exemplo.

No segundo eixo, o objetivo era tentar reduzir o déficit comercial brasileiro com a Rússia e tentar diversificar a pauta, além de debater barreiras fitossanitárias recorrentemente impostas contra o Brasil e tentar garantir a entrega de insumos ligados ao agronegócio, como adubos e fertilizantes.

No terceiro eixo, por fim, é provável que as conversas a portas fechadas tenham incluído assuntos ligados à aproximação russa com países da América Latina como Argentina e Venezuela, além das relações com a China.

Dito isso, é preciso ter claro que o incômodo da ida de Bolsonaro à Rússia não gira em torno do diálogo em si, mas do timing em que se realizou e de suas motivações implícitas.

Ao visitar Putin em meio a uma crise internacional de grandes proporções, e na contramão do que a própria diplomacia brasileira recomendava, Bolsonaro se colocou em um papel arriscado. Fez isso por entender que a viagem energizaria suas próprias bases em pleno ano eleitoral. Promoveu, assim, um aceno ao agronegócio e também ao grupo ideológico ligado à direita radical.

Além disso, Bolsonaro criou para si uma oportunidade de rejeitar a tese de que é um líder isolado, buscou a chance de "sair na foto" com figuras da alta política global e, desse modo, deu um jeito de contrabalançar inclusive o recente tour europeu promovido por seu principal opositor no pleito de 2022, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No fim do último ano, Lula encontrou-se com o presidente francês Emmanuel Macron e com Olaf Scholz, que se tornaria, logo na sequência, o chanceler alemão.

Acima disso tudo, Bolsonaro parece ter tentado utilizar a viagem à Rússia como resposta indireta ao que entende ser um comportamento de indiferença do governo Biden à sua liderança. Seguindo as orientações do Itamaraty, o presidente evitou falar abertamente da crise envolvendo Rússia e os países ocidentais acerca da ampliação da OTAN para a Ucrânia. No lugar disso e diante da impossibilidade de simplesmente ignorar o contexto em que ocorria sua visita, recorreu a uma estratégia igualmente problemática: adotar generalizações cheias de ambiguidades, que só serviram para abrir espaço para mais desconfiança e especulações.

Bolsonaro disse, sem se explicar, de forma desconexa, que "o Brasil é solidário à Rússia", que a viagem "demonstra para o mundo que podemos crescer muito com nossas relações bilaterais" e que o governo brasileiro "está à disposição" de Moscou. Para além da articulação pouco sofisticada, essas são afirmações que tanto podem não significar nada, quanto facilmente poderiam ser interpretadas como provocações veladas aos críticos de seu governo nos Estados Unidos e na Europa ocidental.

O presidente fez isso assumindo o risco de que seus gestos contrariem o pleito do próprio governo para que o Brasil se tornasse um "aliado preferencial extra OTAN", pauta defendida por ele ao lado de Trump, em 2019. Fez isso sabendo, também, que estaria se prestando a alimentar uma narrativa que interessa a Putin no conflito com a Ucrânia: de que o Ocidente está fragmentado e que Moscou é um centro de poder alternativo.

Sem surpresa testemunhamos o chanceler russo Sergey Lavrov, logo após a reunião com o ministro de Relações Exteriores do Brasil Carlos França, colocar o Brasil em saia justa ao usar os holofotes de uma reunião com a imprensa sobre a agenda bilateral para abertamente criticar os Estados Unidos. De forma direta, ele afirmou, diante de todos, que "discutiu em detalhes com os amigos brasileiros a abordagem dos Estados Unidos de substituir o direito internacional pelas suas próprias regras", e que "os Estados Unidos tentam dividir o mundo entre países democráticos e antidemocráticos, entre os que são privilegiados e os que devem ser contidos".

No mesmo dia do encontro entre Putin e Bolsonaro, o jornal The New York Times publicou a informação de que Bolsonaro teria decidido se encontrar com o líder russo após não receber retorno de reiteradas ligações feitas para Biden e do fracasso em organizar um encontro com o presidente norte-americano. Durante a programação em Moscou, sem citar nomes, Bolsonaro demonstrou saber que a visita estaria incomodando outras potências. À imprensa, ele disse que manteve a agenda mesmo sabendo que "alguns países gostariam que o evento não se realizasse". Nas redes sociais, Eduardo Bolsonaro reforçou o coro de que o encontro com Putin contrariava a narrativa de que o presidente brasileiro seria um pária internacional.

Em resumo, a visita à Moscou é, para nós, mais um capítulo de um velho enredo: o da política do ressentimento.