Topo

Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta para Anitta: quem tem medo de você?

Getty Images
Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

12/06/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Esta é parte da versão online da edição deste sábado (11) da newsletter do Jamil Chade. Na newsletter completa, apenas para assinantes, o colunista escreve também sobre como o agronegócio e os bancos estão afinados com a política externa brasileira, a proposta do Brasil para que países não ampliem subsídios para agricultura e a demora na decisão sobre as patentes das vacinas contra a covid-19. Para receber o boletim e ter acesso ao conteúdo completo, clique aqui.

Prezada Anitta,

"Acordei pela manhã em um toque de recolher. Meu Deus, eu era um prisioneiro também. Não conseguia reconhecer as pessoas em torno de mim. Eles vestiam uniformes de brutalidade."

Foram letras como a dessa canção de Bob Marley que convenceram a Unesco a declarar o reggae como Patrimônio da Humanidade.

Mais que um reconhecimento artístico, a decisão da Unesco considerou a música da ilha do Caribe como um instrumento de denúncia. "A sua contribuição à reflexão internacional sobre questões como injustiça, resistência, amor e condição humana destacam a força intelectual, sociopolítica, espiritual e sensual deste elemento do patrimônio cultural", explicou a organização.

Em 1973, outra canção de Marley ganharia o status de uma das principais músicas de protesto da segunda metade do século 20. "Get Up, Stand Up" apelava para que a população "se levantasse por seus direitos" e "não desistisse da luta".

Dos guetos da Jamaica, a música passou a ser um reflexo de um país que, mesmo com o fim da escravidão, não conseguia dar condições dignas de vida para sua periferia. O reggae passou a ser uma forma de expressar essa frustração.

Anitta, te escrevo esta carta no dia dos namorados e com uma mensagem de amor. De amor pela emancipação. Mas também te escrevo em meio a um debate acirrado no Brasil sobre nosso futuro. Se tua arte não pode ser descrita como "engajada", pelo menos não para os mais ortodoxos, a realidade é que você passou a ser uma peça do complexo e turbulento cenário político e social brasileiro.

Desafiadora, você deslocou o imaginário coletivo num país machista e que sequer sabe ainda pronunciar a palavra misógino. Sem fazer concessões, você declara abertamente sua oposição à opressão. Todas elas.

Você ainda nos leva a viver um abalo sísmico, típico de uma sociedade patriarcal. Há como ser poderosa e sensual no palco e engajada na vida em sociedade?

A resposta que você está dando é Política. Sim, com "P" maiúsculo.

Eu sempre me perguntei: onde estão as fronteiras da política? Confesso que não as conheço. Onde é que termina a arte e começa a política? Será que o silêncio - muitas vezes criminoso - é mesmo equivalente a não adotar uma postura política? A realidade é que até mesmo aqueles artistas que lutaram pela autonomia de sua criação estavam, no fundo, atuando como ativistas.

Os fascistas sabiam muito bem do poder das artes como influenciadora dos corações e mentes. A realidade - já diziam alguns - é que as ditaduras também produzem belas canções.

Mas também existem artistas que optam por recuperar a humanidade em cenários de injustiça. Aqueles que vão buscar em pinceladas, em acordes ou em coreografias, a coragem da luta emancipadora.

Se ditaduras logo entenderam o poder da arte, a realidade é que ela é também resistência. Mesmo quando não é militante ou partidária. Quando foram questionados se sua arte fazia sentido, os surrealistas aqui na vizinha Zurique retrucaram com outra pergunta: e faz sentido uma guerra com milhões de mortos? É a arte que berra uma mensagem.

Quem ousaria dizer que, diante da tela de Picasso, não se escutam os gritos de dor, em Guernica. O que dizer da obra do artista judeu Peter Kien, que se transformou em verdadeiros documentos do horror dos guetos. Com apenas 25 anos, ele seria covardemente assassinado em Auschwitz.

Na música, a história não é diferente. O trovador imperfeito, Woody Guthrie, tomou emprestado de sindicatos uma frase e escreveu na tampa de seu violão, em cada uma de suas apresentações: "This Machine Kills Fascists". Pete Seeger subiu aos palcos para popularizar um hino no movimento dos direitos civis nos EUA, "We Shall Overcome".

Em nossas periferias, a identidade é forjada e embalada pelo Hip-hop, movimento que emprestou seu ritmo para dar voz a uma parcela da sociedade deliberadamente colocada em descompasso, violentada e ignorada.

Sem uma "arte política", tua personalidade engajada também permite que você cumpra um papel de ruptura. De quebra da ordem opressiva. E, por isso, incomoda tanto.

A artista que usa sua exposição global para que milhões entendam as forças da sociedade. A personalidade que desconstrói pseudocertezas consolidadas num mundo tomado por incertezas.

De uma maneira absolutamente tua, você ajuda a empurrar a fronteira. Se o feminismo de Frida Kahlo ou de Mary Kelly rompeu paradigmas, quando você assume certas posturas é de emancipação que você fala.

Emancipação não pode ser um quadro pendurada na parede. Ela precisa ser um ato. E é disso que tantos temem. Emancipação do julgamento de outro ser humano. Emancipação financeira, sexual, do corpo, da alma e de destino.

Há uns meses, estive com Ai Weiwei e perguntei a ele qual era o sistema imunológico da sociedade. E ele respondeu: a liberdade de expressão e uma voz independente. "Se não tivermos isso, não teremos o controle sobre o futuro", disse.

Você, para muitos, é parte dessa luta pelo controle sobre o futuro e usa o megafone global que conquistou para influenciar milhões de pessoas. E isso deixa muita gente amedrontada. Que alívio.

Saudações democráticas,

Jamil

***************
LEIA MAIS DESTAQUES EXCLUSIVOS NA NEWSLETTER