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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Brasil é condenado por Corte Interamericana em caso de morte de ativista

Vista do Palácio do Planalto, em Brasília -
Vista do Palácio do Planalto, em Brasília

Colunista do UOL

04/10/2022 20h08

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O estado brasileiro foi condenado nesta terça-feira pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e considerado como responsável pela violação dos direitos à verdade, à proteção e integridade da família de um defensor de direitos humanos. O processo marca uma resposta a 40 anos de impunidade.

Segundo a sentença, o que se registrou foi uma "grave falência" do Estado nas investigações sobre a morte violenta de Gabriel Sales Pimenta, "e pela situação de absoluta impunidade em que se encontra o homicídio na atualidade".

A Corte em San José concluiu que o Brasil "não cumpriu sua obrigação de atuar com a devida diligência reforçada na investigação do homicídio". Para especialistas, a sentença é histórica, ao tratar de um caso de assassinato de um ativista de direitos humanos e o papel do estado em sua proteção.

Gabriel Sales Pimenta era um jovem de 27 anos no momento de sua morte. Em 1980, ele passou a atuar como advogado do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Marabá ("STR") e foi representante da Comissão Pastoral da Terra. Como advogado, ele atuou na defesa dos direitos dos trabalhadores rurais.

"Em 18 de julho de 1982, como consequência de seu trabalho como defensor de direitos humanos, Gabriel Sales Pimenta recebeu três disparos de arma de fogo quando saía de um bar com amigos na cidade de Marabá, no sul do Pará, e morreu instantaneamente", apontou a Corte.

Três homens foram identificados como os supostos autores do homicídio. "Em agosto de 1983, o Ministério Público ofereceu a denúncia penal contra as pessoas anteriormente indicadas como autores do delito de homicídio qualificado. Em novembro de 1999, o Ministério Público solicitou a extinção da responsabilidade penal de um dos acusados, em virtude de sua morte, a qual foi decretada pelo juiz em exercício, em agosto de 2000, juntamente com a improcedência da denúncia contra outro suspeito, por falta de provas".

Com um único réu, um julgamento foi marcado para 2002. Mas ele jamais ocorreu, já que o suspeito não havia sido localizado.

Foi só em 2006 que a Polícia Federal conseguiu cumprir a ordem de prisão preventiva. Mas, em 10 de abril de 2006, os advogados do acusado impetraram um habeas corpus perante o Tribunal de Justiça do Pará, com o intuito de solicitar que se decretasse a prisão domiciliária ou a extinção da responsabilidade penal com base na prescrição. O Ministério Público também se manifestou a favor de que fosse decretada a prescrição, o que foi atendido pelas Câmaras Criminais Reunidas do Tribunal de Justiça do Pará.

Novo processo

Mas a família da vítima não cedeu. Em 2007, Rafael Sales Pimenta, irmão de Gabriel Sales Pimenta, apresentou uma reclamação por excesso de prazo no processo penal, perante o Conselho Nacional de Justiça, alegando a morosidade em sua tramitação. Mas sua reclamação foi arquivada.

Uma outra tentativa foi feita no Estado do Pará por danos morais resultantes da demora na tramitação do processo penal e a conseguinte impunidade do homicídio. Mas o recurso foi negado.

Para a Corte Interamericana, portanto, os estados têm um dever reforçado de devida diligência quanto à investigação do ocorrido.

"A Corte Interamericana, ao analisar os fatos do caso, estabeleceu que há falências graves que refletem uma absoluta falta de devida diligência do Brasil em processar e sancionar os responsáveis pelo homicídio de Gabriel Sales Pimenta e esclarecer as circunstâncias deste, apesar da identificação de três suspeitos e da existência de duas testemunhas oculares e de outros meios de prova que se encontravam à disposição das autoridades estatais desde o início", disse.

Além disso, a Corte concluiu que o caso está inserido em um contexto de "impunidade estrutural relacionado a ameaças, homicídios e outras violações de direitos humanos contra os trabalhadores rurais e seus defensores no Estado do Pará".

Segundo a sentença, a negligência dos operadores judiciais na tramitação do processo penal, que permitiu a ocorrência da prescrição, foi o "fator determinante para que o caso permanecesse em uma situação de absoluta impunidade".

Condenação e medidas

Diante dessas conclusões, a Corte ordenou diversas medidas de reparação:

(i) criar um grupo de trabalho com a finalidade de identificar as causas e circunstâncias geradoras da impunidade e elaborar linhas de ação que permitam superá-las;

(ii) (publicar o resumo oficial da Sentença no Diário Oficial da União, no Diário Oficial do Estado do Pará e em um jornal de grande circulação nacional, assim como a Sentença, na íntegra, no sítio web do Governo Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário do Estado do Pará;

(iii) realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação com os fatos do presente caso;

(iv) criar um espaço público de memória na cidade de Belo Horizonte, no qual seja valorizado, protegido e resguardado o ativismo das pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil, entre eles o de Gabriel Sales Pimenta;

(v) criar e implementar um protocolo para a investigação dos delitos cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos;

(vi) revisar e adequar seus mecanismos existentes, em particular o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, nos âmbitos federal e estadual, para que seja previsto e regulamentado através de uma lei ordinária e tenha em consideração os riscos inerentes à atividade de defesa dos direitos humanos; e

(vii) pagar as quantias fixadas na Sentença a título de dano material, imaterial, custas e gastos.

Mensagem de apoio à democracia

Segundo a sentença, porém, a mensagem da decisão e do caso vai muito além da família da vítima. Na decisão, a Corte destacou que o trabalho das defensoras e defensores de direitos humanos é "fundamental para o fortalecimento da democracia e do Estado de Direito".

O documento ainda fala na necessidade de erradicar a impunidade relacionada a atos de violência cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos, "pois resulta um elemento fundamental para garantir que possam realizar livremente o seu trabalho em um ambiente seguro".

Na avaliação da Corte, a violência contra ativistas tem um "efeito amedrontador, especialmente quando os crimes permanecem impunes".

A esse respeito, a sentença reiterou que as ameaças e os atentados à integridade e à vida dos defensores de direitos humanos e a impunidade dos responsáveis por estes fatos são "particularmente graves porque têm um efeito não apenas individual, mas também coletivo, na medida em que a sociedade se vê impedida de conhecer a verdade sobre a situação de respeito ou de violação dos direitos das pessoas sob a jurisdição de um determinado Estado".

Decisão "histórica"

Helena Rocha, codiretora do programa para o Brasil e Cone Sul do CEJIL, organização que levou o caso à Corte, afirmou que "a sentença confirma o que vários órgãos internacionais têm afirmando sobre o grave cenário de violência sistemática contra pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil e atribui ao Estado uma responsabilidade agravada de protegê-las e de investigar qualquer ato ou ameaça que venha a ser sofrido por elas". "Para isso é fundamental desenvolver instrumentos de enfrentamento à impunidade estrutural de esses casos e promover políticas públicas efetivas para sua proteção", disse.

José Batista, advogado da CPT em Marabá, considerou que a sentença tem um "peso histórico e um valor simbólico muito grande para os camponeses e sus lideranças, que fazem a luta pelo acesso e premência na terra no Brasil".

Para eles, após mais de 40 anos de impunidade, a justiça por Gabriel Pimenta começou a ser feita. "Contudo, ainda há muito caminho a percorrer, pois a proteção a pessoas defensoras de direitos humanos só pode ser efetivada com o fortalecimento de políticas públicas adequadas como as que foram ordenadas pela Corte no caso concreto. A luta de Gabriel Pimenta é constante e de todas e todos nós", afirmam.

O irmão do Gabriel, Rafael Pimenta, concluiu que a condenação "foi um marco muito importante na luta pela defesa dos defensores de direitos humanos". "Gabriel era um advogado de direitos humanos, um advogado dos trabalhadores sem terra e da população desassistida pelo Estado brasileiro. É uma vitória do Gabriel, é uma vitória dos direitos humanos e é uma vitória do povo brasileiro", completou.