Jamil Chade

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Carta aberta: eu tenho lado nesta guerra

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Quando o bloqueio sobre Gaza foi estabelecido, o governo de Israel convocou nutricionista para que examinassem o volume de alimentos que poderia entrar na região. Assim, evitariam que os palestinos morressem de fome. Mas, ao mesmo tempo, impediriam qualquer tipo de fartura. Ficariam no limite.

Foi determinado que cada habitante de Gaza precisava receber 2279 calorias por dia.

O governo israelense insistiu que essa informação apenas fazia parte de documentos internos e que nunca teria sido aplicada. Mas, mesmo assim, foi estipulado que exatos 131 caminhões de alimentos seriam autorizados a entrar em Gaza por dia. O recado era claro: somos nós quem controlamos seu destino.

Isso, porém, não aconteceu agora. Na verdade, essa medida tem 16 anos e foi tomada quando o bloqueio sobre Gaza foi intensificado por Israel.

Portanto, para começar a contar a história da atual tensão no Oriente Médio, não podemos nos limitar a relatar os fatos a partir de 7 de outubro. Naquele dia, num ato abjeto e desumano, israelenses foram brutalmente violentados pelo Hamas, em cenas chocantes e espalhando dor em toda uma sociedade. Estive com as famílias das vítimas. Como não chorar? Como não entender o medo que sentem?

Não escrevo esta carta, portanto, para justificar esses atos. Não há como relativizar, argumentar ou fechar os olhos diante da barbárie.

Escrevo simplesmente para descrever como a opressão, neste caso, não é um evento. Ela é estrutural e estrategicamente desenhada.

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Falar de Gaza, de fato, é falar de uma anomalia da guerra de 1948. Aos 80 mil habitantes que a região tinha naquele momento, se somariam outros 200 mil palestinos, expulsos de suas casas.

Falar de Gaza é, necessariamente, falar da ocupação ilegal por parte de Israel, a partir de 1967, com consequências profundas para milhões de sobreviventes.

Falar do atual conflito também exige retornar aos acontecimentos de 1987, com a Primeira Intifada e o surgimento do Hamas, um grupo islâmico que ganha popularidade com suas ações sociais e sua base religiosa. Para o Hamas, porém, o caminho da diplomacia da OLP não interessava. A recuperação dos territórios palestinos teria de vir pelas armas e pela destruição de Israel, como diz sua carta de constituição.

Mas, cinicamente, o grupo também passou a cumprir a função conveniente para Israel. Ele reduziria o poder do campo nacionalista de Yasser Arafat e ajudaria na estratégia de fragmentar a sociedade palestina.

De seu lado, Israel também aprofundava essa cisão entre os palestinos. Se por décadas um cidadão de Gaza poderia ir para a Cisjordania, apenas com uma autorização, a situação mudou a partir de 1991. Israel rejeitou o livre fluxo de palestinos e, aos poucos, a fragmentação da sociedade começou a ser uma realidade.

O racha entre o Hamas e Arafat se aprofundou ainda mais quando, em 1993, o histórico líder palestino assina os acordos de Oslo, na Casa Branca. Num discurso que mais parece um eco distante de um sonho, Rabin dizia que queria "rezar" ao lado dos palestinos.

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Com seu assassinato por radicais israelenses, Oslo se transformou em uma ilusão. E, do lado palestino, o Hamas se aproveitou para exigir o fim dos acordos e deslegitimar Arafat. Aos olhos de milhares de palestinos, seu grupo era corrupto e desconectados do povo.

O terremoto político viria em 2006. Numa eleição confirmada como justa e transparente por observadores internacionais, o Hamas sai como grande vitorioso nas urnas.

Mahmoud Abbas, presidente palestino, não teve escolha e pediu que o Hamas formasse um governo, deixando Ismail Haniyeh como primeiro-ministro.

Naquele mesmo momento, o Quarteto — grupo formado por EUA, Rússia, UE e ONU — emitiu um comunicado no qual congratulavam o povo palestino pela eleição. Mas faziam uma exigência: qualquer ajuda internacional dependeria da garantia que o novo governo palestino daria de que se comprometeria com princípios de não-violência e reconhecimento de Israel.

O Hamas não aceitou e o que se seguiria seria uma crise inédita, inclusive levando os palestinos a um embrião de uma guerra civil.

Em apenas uma semana de conflitos entre as diferentes facções palestinas, o Hamas toma o controle de Gaza. Abbas fica com a Cisjordânia, dissolve governo liderado pelo Hamas e nunca mais uma eleição foi convocada.

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O poder estava dividido e o sonho de um estado palestino cada vez mais distante.

Mas os problemas estavam apenas começando. Em 2007, Israel adota o bloqueio sobre Gaza. Em parte para frear ataques contra sua população. Mas também na esperança de que um colapso social levasse a população a derrubar o Hamas.

Nos anos seguintes, a pobreza explode, o desemprego passa a ser a norma e, em 2012, a ONU alerta que Gaza ficaria inabitável até 2020 se o bloqueio não fosse reavaliado. Nunca foi.

Resultado dessa opressão estrutural, o que existe em Gaza é uma juventude que apenas conhecia Israel por meio de bombas. Uma geração inteira que nunca encontrou um civil israelense. Jovens que atravessaram quatro guerras, têm uma enorme chance de não ter trabalho e acumulam a dor de ter parentes em luto, feridos ou enlouquecidos.

Em 15 anos, israelenses ainda lançariam quatro ofensivas militares sobre Gaza e, enquanto o bloqueio criava a maior prisão a céu aberto do mundo, o que se viu foi um recrudescimento do autoritarismo, tanto pelo Hamas como pelo grupo de Abbas, o Fattah.

De acordo com a entidade Anistia Internacional, havia na Faixa de Gaza controlada pelo Hamas antes da ofensiva militar "um clima geral de repressão", o que efetivamente impediu a dissidência.

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"Na Cisjordânia, as autoridades palestinas controladas pelo Fatah continuaram a reprimir eventos públicos que homenageavam figuras da oposição ou agitavam bandeiras da oposição", disse.

Em 2022, por exemplo, as forças de segurança dispararam gás lacrimogêneo para dispersar uma reunião pacífica em Tubas, no norte da Cisjordânia, que comemorava a libertação de um membro de uma facção dissidente do Fatah, após 20 anos de detenção israelense.

Abbas ainda emitiu um decreto dissolvendo o Sindicato dos Médicos Palestinos, dominado por representantes afiliados a facções opostas, e nomeando um "conselho constitutivo" não eleito.

Enquanto isso, Israel conduzia operações secretas para assassinar líderes de movimentos de contestação em Nablus e outras cidades, destruía qualquer chance de autonomia e confiscava impostos pagos pelos palestinos.

Falar de Gaza, portanto, é falar de tudo isso. E não apenas o que ocorreu em 7 de outubro, por mais condenável que seja.

Falar de Gaza, portanto, é falar de uma contínua violação do direito à vida, ao presente e ao futuro, por mais que o mar Mediterrâneo dê a ilusão de uma liberdade.

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Falar de Gaza é também denunciar o fato de que estamos vendo, ao vivo, um crime de atrocidade que, de acordo com relatores da ONU, corre um risco real de conduzir a um genocídio.

Isso tudo comandado impunemente por um Estado que ocupa territórios invadidos e diante do silêncio criminoso de cúmplices pelo mundo.

Neste domingo, enquanto o mundo comemora os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, eu afirmo sem qualquer tipo de hesitação. Eu tenho lado na guerra. O lado das vítimas. Sempre.

Saudações democráticas,

Jamil Chade

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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