Jamil Chade

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Geopolítica e guerras neutralizam sonho do COI de despolitizar Olimpíadas

O jogo nem sequer tinha começado, mas, quando o locutor do Parc des Princes, em Paris, anunciou a escalação da seleção de futebol de Israel, as vaias do estádio romperam o espírito olímpico e continuariam cada vez que o time pegasse na bola e no momento do hino nacional.

Horas antes, o presidente do COI, Thomas Bach, usou seu discurso no Congresso da entidade para insistir na tese da neutralidade política do evento, ainda que tenha admitido que existe um racha internacional como nunca antes desde a Segunda Guerra Mundial. "Nestes tempos difíceis, há tantas forças dividindo a humanidade: o excesso de guerras e conflitos em todo o mundo, a dissociação da economia global, a ganância, o ódio, as notícias falsas, o protecionismo, e a lista continua", disse Bach.

Reforçando a narrativa de união, ele apontou como os atletas estão "mostrando como viver pacificamente juntos sob o mesmo teto na Vila Olímpica". "Os atletas estão nos mostrando que, em nosso Movimento Olímpico, somos todos iguais. Não há discriminação. Não existe "sul global" ou "norte global", existe apenas uma aldeia global — a Vila Olímpica", completou.

Seu discurso não foi um ato isolado. Em março, o COI aprovou uma declaração, consolidando a proposta de uma despolitização do evento. Desde então, nos bastidores, Bach rejeitou a pressão de governos árabes para que algum tipo de exclusão fosse estabelecido contra Israel, em razão dos ataques em Gaza. O alemão ainda rejeitou a pressão das potências ocidentais e permitiu que atletas russos participem do evento, ainda que sem a bandeira de seu país.

Bandeiras palestinas em meio à torcida do Mali em partida contra Israel
Bandeiras palestinas em meio à torcida do Mali em partida contra Israel Imagem: LUCA CASTRO - 24.jul.24/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Seus esforços para despolitizar o evento, porém, estão sendo questionados pela realidade de um mundo profundamente rachado. Para diplomatas que acompanham o evento, as vaias contra Israel serviram de um sinal claro. Fontes do movimento olímpico indicaram ao UOL que, de fato, existia a esperança de que o público dos Jogos de Paris atenderia ao chamado de por uma trégua. Não foi o que se viu no Parc des Princes, com bandeiras palestinas que se confundiam com a torcida do Mali.

Há menos de uma semana, coube a um deputado da esquerda francesa, Thomas Portes, declarar que os 90 atletas israelenses não seriam bem-vindos em Paris.

Um teste ainda será o desfile de abertura e a reação do público diante das delegações como a da Rússia, Israel, Irã e de outros países. Outro teste será ainda quando qualquer um desses atletas cruzar em suas chaves com delegações de países inimigos.

"Muitos deles não têm escolha: se o ditador de turno decidir que seu país não enfrenta um israelense, um russo ou ucraniano, esses atletas não têm como resistir", afirmou um embaixador europeu que, por anos, esteve envolvido nos bastidores do esporte.

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Macron e o Rei Sol

Se a promessa do COI é a de tirar o caráter político do evento, o próprio governo francês de Emmanuel Macron não poupa qualquer ocasião para transformar o evento em uma plataforma diplomática, com o objetivo de mostrar ao mundo que a França continua tendo um papel relevante na disputa pelo poder mundial.

Paris já deixou claro que quer usar o evento para sinalizar sua "vocação" ao diálogo, tanto com o sul global como com os asiáticos e potências ocidentais, principalmente num momento de profunda incerteza.

Macron esperava chegar à primeira Olimpíada em Paris em cem anos na condição de uma espécie de Rei Sol, acolhendo a mais de cem chefes de Estado, mas a crise política doméstica criou uma sombra sobre suas ambições.

Rivalidade entre hegemonias

Outras manobras menos nobres estão sendo acompanhadas de perto em Paris. Uma delas é a acusação por parte dos EUA sobre a forma de preparação dos chineses, supostamente repleta de doping.

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Se desde o final da Guerra Fria os americanos reinaram absolutos no topo do quadro de medalhas, os chineses passaram a desafiá-los nos últimos anos. A liderança de Pequim também passou a ser usada como um sinal claro de que o mundo não tem mais apenas uma superpotência e, em Paris, essa disputa estará presente em cada modalidade.

Histórico de atos políticos

Nada disso é novo. O evento que se pretendia apolítico ganhou sua versão moderna no ano que, por coincidência, marcava a independência da Grécia do império Otomano.

Em 1936, em Berlim, Adolf Hitler escancarou o caráter político do evento. Por diferentes motivos, boicotes ainda foram registrados em 1936, 1956, 1965, 1976, 1980, 1984 e 1988. Aquela década de 80 seria um dos momentos mais críticos do COI, desacreditado, sem dinheiro, sem grandes metrópoles que quisessem sediar os eventos e com seus valores profundamente questionados.

O fim da Guerra Fria salvou o movimento olímpico, mas abriu um novo capítulo da propaganda oficial. Em 2008, a China anunciou sua chegada ao status de superpotências com 2.000 tambores na abertura dos Jogos.

Fogos de artifício explodem sobre o Estádio Nacional, também conhecido como Ninho de Pássaro, durante um ensaio para a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008
Fogos de artifício explodem sobre o Estádio Nacional, também conhecido como Ninho de Pássaro, durante um ensaio para a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008 Imagem: Jason Lee - 16.jul.2008/Reuters
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Talvez pouca coisa seja mais clara sobre o caráter político da Olimpíada, porém, que a obra de 1968 "Asterix nos Jogos Olímpicos". Os autores René Goscinny e Albert Uderzo contam como o herói Asterix viaja até a Grécia e, diante de concorrentes muito mais fortes, consegue enganar os competidores e sair vencedor.

Numa paródia da realidade, porém, a obra mostra como o objetivo dos atletas romanos era o de glorificar Júlio Cesar, não a humanidade.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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