FBI e CIA agiram para sufocar movimento negro nos EUA, mostram documentos
O FBI e a CIA atuaram para impedir o fortalecimento dos movimentos negros nos EUA. Documentos oficiais das agências revelam uma estratégia deliberada para sufocar as demandas por direitos civis, nos anos 60, com a infiltração de agentes secretos, disseminação de desinformação sobre os líderes, acusações de infidelidade envolvendo os principais protagonistas e assassinatos.
O movimento por direitos civis, nos EUA, transformou a sociedade americana marcada pelo segregacionismo institucionalizado, reivindicando um espaço para milhões de negros que, depois do fim da escravidão, tinham um status de cidadão de segunda classe.
Os dados sobre a ação clandestina das agências americanas fazem parte do vasto material reunido pelos advogados da família de Malcolm X, que entraram na Justiça acusando o estado de envolvimento na morte do líder negro.
Malcolm X foi morto em 1965 e, quase 60 anos depois, sua família acusa as agências americanas de terem supostamente conspirado para matar o líder dos direitos civis. O processo está sendo movido por Ilyasah Shabazz, filha de Malcolm, e outros membros da família.
Segundo a acusação, o Departamento de Justiça, o FBI, a CIA e o NYPD (a polícia de Nova York) sabiam com antecedência do plano para matar Malcolm, mas não fizeram nada para impedi-lo e, mais tarde, trabalharam para encobrir seu envolvimento.
"Acreditamos que todos conspiraram para assassinar Malcolm X, um dos maiores líderes de pensamento do século XXI", disse Ben Crump, o advogado que representa a família.
O processo acusa o FBI e a CIA de ter colocado agentes secretos na Nação do Islã, um movimento negro do qual Malcolm X era porta-voz. A denúncia ainda diz que agentes do FBI agiram nos bastidores para que o líder ficassem sem seus seguranças no dia de seu assassinato.
Ameaça à segurança nacional
Mas os documentos apresentados à Justiça e que o UOL teve acesso revelam uma operação que ia muito além de um só indivíduo. Havia um plano deliberado de impedir o fortalecimento do movimento negro nos EUA, com uma ação que precedia a morte de Malcolm X.
Edgar Hoover, fundador e diretor do FBI, já vinha atuando anos antes contra as lideranças negras. De acordo com os documentos, ele infiltrou agentes secretos dentro da organização que Marcus Garvey liderava, a UNI-ACL, tentando implica-lo em quaisquer crimes que impedissem o seu trabalho de mobilização do movimento negro.
Garvey seria finalmente condenado por fraude postal em 1923. Ele foi preso e posteriormente deportado para a sua terra natal, a Jamaica. Esta foi a primeira ação conhecida de Hoover e do FBI para instalar informantes, provocadores ou agentes infiltrados dentro de organizações negras para abalar o ativismo pelos direitos civis.
Hoover e o governo dos Estados Unidos, portanto, agiram para silenciar a voz de um importante líder negro. Para o FBI, o ativismo negro era uma ameaça à segurança nacional.
Programa de contrainteligência
Em 1956, Hoover criou, de forma sigilosa, o Programa de Contrainteligência, ou COINTELPRO. Num memorando de 1964, ele revelaria como a iniciativa tinha tido êxito em "interromper, expor e neutralizar os comunistas". Aqueles eram os anos do auge da Guerra Fria.
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JAMIL CHADE
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Quero receberMas no mesmo memorando, Hoover descreveu sua satisfação com os resultados e seu uso potencial em outras áreas fora do combate ao comunismo:
"Ao longo dos anos, nossa abordagem dos programas de investigação no campo da inteligência deu origem a vários programas novos, alguns dos quais foram revolucionários, e pode-se presumir que, com a continuação da abordagem agressiva desses problemas, novas e produtivas ideias surgirão".
O movimento negro, portanto, seria o próximo alvo e o programa passou a focar nos líderes das campanhas de grupos que reivindicavam direitos civis, entre eles Malcolm X.
Em agosto de 1967, Hoover enviou uma mensagem aos escritórios do FBI em Nova York, Chicago, Newark, Boston e Washington D.C., indicando que o objetivo dessas "operações e técnicas" secretas e "sensíveis" do COINTELPRO era "expor, interromper, desorientar, desacreditar ou neutralizar as atividades de organizações negras e grupos nacionalistas e de ódio, sua liderança, porta-vozes, membros e apoiadores, e combater sua propensão à violência e à desordem civil".
A COINTELPRO não só visava e monitorava Malcolm X, mas também outros ativistas e grupos negros conhecidos, rotulando-os como "Extremistas Negros" ou "Grupos de Ódio Nacionalistas Negros". O foco da COINTELPRO incluía Martin Luther King Jr, o Partido dos Panteras Negras, Fred Hampton, Kwame Toure, Elijah Muhammad, o Partido Democrático da Liberdade do Mississippi e outros.
Um memorando de março de 1968, uma vez mais enviado por Hoover para Nova York, Chicago, Nova York, Newark, Boston e Washington, DC, explicava que as ações contra o movimento negro foram projetadas para "prevenir o surgimento de um 'messias' que pudesse unificar e eletrificar o movimento nacionalista militante negro", para "impedir coalizões de grupos nacionalistas negros militantes" e para "impedir que grupos e líderes nacionalistas negros militantes ganhassem respeitabilidade".
Nesse memorando, Hoover identificou Malcolm X, Elijah Muhammad, Martin Luther King Jr. e Stokely Carmichael como "messias" visados e a Conferência de Liderança Cristã do Sul e a Nação do Islã entre as organizações negras visadas.
Métodos incluíam desmanchar casamentos
Os métodos incluíam campanhas de desinformação conduzidas por informantes com o objetivo de provocar conflitos dentro do movimento, desencorajar doadores e apoiadores e até mesmo desmanchar casamentos. A atividade investigativa ostensiva também foi usada, pois "um dos objetivos declarados do programa COINTELPRO era inspirar medo entre os ativistas, convencendo-os de que um agente do FBI estava à espreita atrás de cada caixa de correio".
Os métodos do FBI incluíam roubos, organização de prisões e processos judiciais injustos, trabalho com a polícia local para planejar e implementar batidas policiais violentas, uso de seus informantes e provocadores para incentivar atividades ilegais e acusação falsa de líderes e membros de organizações do movimento negro de serem informantes.
Ao longo dos anos, com ou sem o envolvimento de agentes do estado, a realidade é que os principais líderes do movimento negro foram "neutralizados".
- Malcolm X foi assassinado
- Martin Luther King Jr. foi assassinado
- Fred Hampton, líder do Partido dos Panteras Negras, foi assassinado
- Marcus Garvey doi preso e deportado
- Stokely Carmichael, líder da SNCC, foi morto
A estratégia contra Malcolm X
O FBI abriu um inquérito secreto sobre Malcolm X pela primeira vez em março de 1953. Seis anos depois, em novembro de 1959, o escritório do FBI em Nova York enviou um relatório a Hoover declarando que o líder negro havia se tornado o "herdeiro" de Elijah Muhammad, chefe da Nação do Islã.
Hoover, assim, decide que o FBI deveria se concentrar em "desativar o movimento Nação do Islã, neutralizando Malcolm X".
Em 22 de maio de 1960, o diretor assistente do FBI, Cartha DeLoach, aprovou o envio de uma carta anônima sobre os supostos casos extraconjugais de Elijah Muhammad para sua esposa e vários membros da Nação do Islã.
A dissidência começava a se instalar. Malcolm X passou a criticar as transgressões morais de Elijah Muhammad. Para alimentar ainda mais a divisão entre os dois líderes, em 31 de julho de 1962, o agente William Sullivan, do FBI, aprovou outro conjunto de cartas a serem enviadas aos seguidores de Elijah Muhammad e a outras pessoas a respeito de seus supostos casos extraconjugais.
Sullivan especificou ao agente especial encarregado de Chicago que as "cartas deveriam ser enviadas em intervalos escalonados, com o cuidado de evitar qualquer possibilidade de rastreamento da correspondência até o FBI".
Enquanto isso, o FBI tentou explorar a discórdia entre os líderes quando um agente visitou a casa de Malcolm X em 4 de fevereiro de 1964, um ano antes de seu assassinato.
"Nós conversamos com pessoas todos os dias que odeiam o governo ou odeiam o FBI. É por isso que eles pagam dinheiro, você sabe", afirmou o agente ao líder do movimento negro. A tentativa de subornar Malcolm X não teve êxito.
Mas a dissidência no movimento negro e o enfraquecimento da luta tinham avançado. Em 8 de março de 1964, Malcolm X anunciou sua saída da Nação do Islã e seu plano de criar seu próprio partido nacionalista negro.
Em 30 de março de 1964, o agente especial encarregado do FBI em Nova York enviou um memorando a Hoover recomendando uma operação de escuta ilegal da casa de Malcolm X. Um dia depois, o chefe do FBI recomendou a "vigilância técnica ilegal na residência de Malcolm X. Little, 23-11 97th Street, East Elmhurst, Queens, Nova York, ou em qualquer endereço para o qual Malcolm X. Little tenha sido transferido ou em qualquer endereço para o qual ele possa se mudar no futuro".
Num outro documento, o ex-policial de Nova York Gerry Fulcher admitiu que foi designado para
controlar a escuta telefônica ilegal de Malcolm X. Todas as noites, ele transportava suas fitas de escutas para uma divisão de inteligência municipal e federal.
O que os agentes ouviram gerou um sinal de alerta entre as autoridades. Pouco tempo depois, em 5 de junho de 1964, Hoover enviou um telegrama ao escritório do FBI na cidade de Nova York dizendo: "faça algo a respeito de Malcolm X".
Denúncias internacionais
Parte dos documentos também revela que a operação do estado americano contra o movimento negro tinha como objetivo impedir que a reputação internacional dos EUA sofresse.
Em 1º de dezembro de 1964, o amigo de Malcolm X, Alex Quaison-Sackey, de Gana, foi eleito presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas. Quaison-Sackey era um crítico das políticas raciais dos EUA.
Dois dias depois, o escritório do FBI em Nova York enviou um memorando a Hoover sugerindo que seria "desejável uma cobertura adicional das atividades (de Malcolm X), especialmente porque ele pretende levar a questão dos negros às Nações Unidas".
A partir daquele momento, o FBI passou a vigiar Malcolm X onde quer que ele fosse, inclusive no exterior. Em sua visita ao Egito, em fevereiro de 1964, ele foi envenenado. Malcolm X escreveu uma carta para seu amigo no Harlem, dizendo: "Você deve entender que o que estou tentando fazer é muito perigoso, pois é uma ameaça direta a todo o sistema internacional de exploração racista.... Portanto, se eu morrer ou for morto antes de voltar aos Estados Unidos, você pode ter certeza de que o que eu já coloquei em ação nunca será será interrompido. Nosso problema foi internacionalizado".
Em 3 de abril de 1964, num de seus discursos mais conhecidos, Malcolm X destacou a importância de a questão do racismo se tornar uma causa internacional. "Quando você expande a luta pelos direitos civis para o nível dos direitos humanos, você pode levar o caso do homem negro deste país para as nações da ONU. Poderá levá-lo à Assembleia Geral. Você pode levar o Tio Sam a um tribunal mundial", disse.
Em 9 de fevereiro de 1965, 12 dias antes de ser assassinado, Malcolm X tinha uma viagem planejada para a França. Não seria a primeira vez e jamais, em suas missões ao país europeu, ele enfrentou resistência.
Naquele ano, porém, a história seria outra. A França se recusou a permitir que Malcolm X entrasse no país sem motivo aparente.
Pouco depois do assassinato de Malcolm X, o jornalista Eric Norden disse ter conversado com um diplomata norte-africano sobre a viagem de Malcolm X à França. Norden afirmou que o diplomata revelou que "havia sido discretamente informado pelo Departamento Francês de Documentação de Estrangeiros e Contra-Espionagem que a CIA planejava o assassinato de Malcolm, e a França temia que ele pudesse ser liquidado em seu solo".
O diplomata acrescentou que "sua CIA está começando a assassinar seus próprios cidadãos agora".
Menos de suas semanas depois, ele seria morto.
Em 1972, após a morte de Hoover, sua secretária pessoal destruiu, de acordo com suas próprias instruções, mais de 30 caixas de arquivos pessoais. Sullivan, um dos ex-agentes do FBI, descreveu como "realmente cheias de material". "Estavam simplesmente carregadas", admitiu.
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