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Jeferson Tenório

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Para Bolsonaro a fome é uma invenção para lhe tirar votos

Jeferson Tenório

Colunista do UOL

29/08/2022 04h00

Imagine que você entre numa padaria, tome seu café, coma seu pão na chapa. Depois, você se levanta, paga e, ao sair, é abordado por um morador em situação de rua. Ele diz que está com fome. Você olha para ele. Percebe o quanto os olhos dele expressam a fome que sente. Você volta para a padaria, pede para que um atendente faça um sanduíche de presunto e queijo e café para viagem. Assim que sai, você entrega o café para o pedinte. Ele agradece e diz "Deus te abençoe".

Você fica satisfeito com seu próprio gesto. Assim que você se vira, um outro morador de rua te pede comida. Você, constrangido, diz que não pode ajudar e justifica dizendo que já ajudou outra pessoa. Você está atrasado para o trabalho. Mais adiante, você olha para atrás e vê mais outros pedintes abordando clientes da padaria. Para quem mora nas grandes cidades, ou mesmo em cidades pequenas certamente já passou por algo semelhante.

Se Bolsonaro presenciasse uma cena dessas provavelmente iria dizer que aquele pedinte é petista, comunista ou que deve ser um desocupado que não gosta de trabalhar. Para Bolsonaro a fome é uma invenção para lhe tirar votos. Para ele, a fome é uma invenção da esquerda, dos comunistas e da mídia. Para ele, a fome é um delírio coletivo. A fome só existe para quem passa fome. Se o presidente não passa fome, ela não existe. A lógica é essa. Simples assim.

Certo vez, escrevi num artigo para Folha de São Paulo, que ter um idiota na presidência da república seria muito mais útil ao Brasil que o atual presidente. O "Idiota" que me referia era o célebre personagem de Dostoiéviski. Não estava enganado. Há muitas formas de ser pior que o "Idiota" ocupando um espaço de poder. Dizer, por exemplo, que nunca viu ninguém pedindo pão na frente de uma padaria, nos dias de hoje, é uma delas.

A gente não devia mais ficar estarrecido com as violências de Bolsonaro. Já naturalizamos sua falta de empatia. Já sabemos que ele é um genocida. Já sabemos que ele debocha do sofrimento alheio. Já sabemos que ele não gosta de pobres, não gosta de pretos, não gosta de mulheres. Já sabemos que ele é negacionista. Já sabemos que ele sequestrou Deus para seu partido. Já sabemos que ele é corrupto. E que quando fala em governar para família, é na família dele que ele se refere. Sim, sabemos de tudo isso. Mas porque ainda é assombroso ouvir tamanha crueldade da boca de um presidente. Por que ainda nos causa espanto tal escárnio e deboche?

Dizer que 33 milhões de pessoas passando fome no Brasil é fake news ultrapassa qualquer possibilidade de ficarmos indiferentes a uma declaração dessas. O grau de cinismo e escárnio é mesmo aterrador. Segundo Bolsonaro "A fome pra valer não existe da forma como é falado". Vou reproduzir a fala inteira do presidente:

"Se eu falar para vocês "não tem fome no Brasil", amanhã o pessoal me esculacha na imprensa. Mas eles não sabem a realidade, se existe gente faminta no Brasil ou não. O que a gente pode dizer, se for em qualquer padaria aqui, não tem ninguém ali pedindo para você comprar um pão para ele, isso não existe. Falando isso eu estou perdendo votos, mas a verdade você não pode deixar de dizer. Quem por ventura está no mapa da fome pode se cadastrar, vai receber, não tem fila o Auxílio Brasil. São 20 milhões de famílias (beneficiadas)".

Ao dizer "eles não sabem", Bolsonaro se refere aos dados coletados pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, lançado em junho deste ano. E a frase "Quem por ventura está no mapa da fome" soa como "Olha, se por um acaso você estiver nesse mapa aí que não existe vai lá e faz um cadastro", como se aquele sujeito que pede pão na frente da padaria tivesse condições favoráveis para isso.

O sujeito que pede pão na frente de uma padaria já perdeu a dignidade, é invisível ao Estado. Às vezes, me sinto tão impotente com as palavras. Parece que nada do que se possa dizer sobre as atrocidades de Bolsonaro surtem efeito. Talvez seja aquele mesmo sentimento que temos ao dar comida para quem tem fome, mesmo sabendo que o problema é muito maior que aquele gesto e que outros e mais outros pedintes continuarão com fome enquanto você ruma para o trabalho.