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Josias de Souza

Bolsonaro recorre no STF contra autonomia de governadores sobre isolamento

ADRIANO MACHADO
Imagem: ADRIANO MACHADO

Colunista do UOL

14/04/2020 04h10

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Jair Bolsonaro recorreu contra a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a autonomia de governos estaduais e municipais para decretar medidas restritivas contra o coronavírus, mesmo que o governo federal adote providências em sentido contrário. Entre os poderes atribuídos a governadores e prefeitos estão a decretação de isolamento social, quarentena, suspensão de atividades escolares e restrições ao funcionamento do comércio.

O recurso do presidente foi protocolado na Suprema Corte nesta segunda-feira, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU). Assinam a peça o advogado-geral André Mendonça e quatro de seus subordinados. No texto, o governo alega que o despacho de Alexandre de Moraes contém contradições e obscuridades. Pede que a liminar concedida para evitar que Bolsonaro revogasse decisões de governadores e prefeitos seja suspensa até o julgamento da reclamação.

Divulgada no dia 8 de abril, a decisão de Alexandre de Moraes foi tomada no âmbito de ação movida pela Ordem dos Advogados do Brasil. Nela, o ministro anotou que "não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais..." relacionadas ao distanciamento ou isolamento social.

Graças a esse despacho, Bolsonaro foi impedido de cumprir a ameaça de reabrir o comércio por decreto, reiterada em entrevistas e nas redes sociais. Ao se antecipar ao decreto, Moraes como que sinalizou o risco que enxergava na retórica de Bolsonaro.

Para a AGU, Moraes agiu contra a jurisprudência do próprio Supremo ao "controlar preventivamente a constitucionalidade de eventual ato normativo federal, impedindo a produção de seus efeitos."

Numa evidência dos tempos estanhos que Brasília vive sob Bolsonaro, o recurso do governo ilumina o surrealismo do caso. A pretexto de conceder salvo-conduto a governadores e prefeitos para gerir a crise do coronavírus, revogou-se, por assim dizer, um decreto presidencial não editado.

"Não é possível sustar efeitos de decisões que sequer chegaram a ser formalizadas", anotou a AGU no recurso, "da mesma maneira como não se pode salvaguardar, aprioristicamente, a validade de todos os decretos estaduais, distritais e municipais editados com fundamento na proteção da saúde pública, matéria que ostenta inegável volatilidade técnico-científica."

A Advocacia da União sustenta que a decisão de Alexandre de Moraes manietou Bolsonaro, "uma vez que a autorização para que Estados e municípios atuem, independente de superveniente ato federal em sentido contrário, tem como resultado uma inibição dramática das competências normativas do poder público federal".

O ministro do Supremo fez em seu despacho algo muito parecido com uma análise de conjuntura. Anotou que o momento é de união do poder público para enfrentar a crise sanitária, e não de personalismos. Lamentou o que chamou de "grave divergência de posicionamentos entre autoridades de níveis federativos diversos" -alusão às divergências de Bolsonaro com os governadores, sobretudo João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ).

Moraes lastimou também as divergências entre "autoridades federais componentes do mesmo nível de governo" —referência à falta de sintonia de Bolsonaro com seu ministro da Saúde, Henrique Mandetta.

No recurso preparado pela AGU, o Planalto enfatiza que Bolsonaro não agiu contra os executivos estaduais e municipais:

"Cumpre esclarecer que o presidente da República não impediu atos de governadores e prefeitos que, adstritos às normas gerais, observadas as recomendações técnicas dos órgãos competentes, determinem medidas restritivas em razão da crise sanitária."

Entretanto, o texto deixa claro que Bolsonaro não abre mão de conservar intacto o seu poder para agir:

"Considerando, no entanto, o alto grau de mutabilidade das circunstâncias fáticas e científicas inerentes à atual pandemia, não se pode negar, preventiva e abstratamente, em sede de controle judicial de constitucionalidade, o exercício da prerrogativa constitucional atribuída à União de alterar a norma geral de regência, com a finalidade de adequar, de maneira harmônica em todo o país, os níveis de proteção e defesa da saúde às demais necessidades nacionais."

O recurso da AGU tem 34 páginas. Na folha de número 28 há uma referência à cogitação do governador paulista João Doria de recorrer a medidas draconianas como a prisão para impor o confinamento em São Paulo.

Diz o texto: "Verifica-se o perigo de dano de difícil reparação, sobretudo em razão de que o desrespeito aos decretos estaduais, distritais e municipais possa configurar o delito previsto no artigo 268 do Código Penal."

O documento reproduz no rodapé da página o teor do artigo citado: "Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa."

A AGU realça que "já se registram ameaças de governadores". A despeito do uso do plural, o documento traz no rodapé da mesma página 28 notícia com declaração do advogado-geral André Mendonça contra um personagem singular. Nela, lê-se o seguinte:

"O governo Jair Bolsonaro pode ir à Justiça contra estados e municípios que adotarem 'medidas restritivas de direitos fundamentais do cidadão' sob o pretexto de combater o novo coronavírus. Em nota, o advogado-geral da União (AGU), André Mendonça, diz que 'medidas de restrição devem ter fins preventivos e educativos - não repressivos, autoritários ou arbitrários'."

A notícia reproduzida no documento da AGU prossegue: "...'Medidas isoladas, prisões de cidadãos e restrições não fundamentadas em normas técnicas emitidas pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa abrem caminho para o abuso e o arbítrio', afirmou. O aviso do AGU vem depois de o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), falar que poderia adotar medidas mais duras - como aplicação de multas e até prisão - caso a população não aderisse voluntariamente ao isolamento social."

Quer dizer: Um dos objetivos do recurso impetrado por ordem Bolsonaro no Supremo é o de reaver a prerrogativa de agir contra eventuais decisões de Doria, hoje visto pelo presidente como seu principal adversário político.