Falta ao governo o ovo digno de ser cacarejado
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Moro num sobrado com uma linda vista. É grudado numa reserva ecológica. Da varanda, vê-se o Lago Paranoá. E depois dele, miniaturizados pela distância, o Congresso, o Planalto e a Esplanada dos Ministérios.
Isolado pelo vírus, adquiri o hábito de sair à varanda à noitinha. Encanta-me a possibilidade de admirar, assim de longe, banhada pela lua, a silhueta do poder.
Noutro dia, veio-me à tona um haicai de Mário Quintana: "Silenciosamente, sem um cacarejo, a noite põe o ovo da lua..."
Raciocinei comigo: as autoridades de Brasília, diferentemente da noite, cacarejam, cacarejam, mas não botam muitos ovos.
No alvorecer da gestão de Jair Bolsonaro, houve uma exceção. Aprovou-se uma vistosa reforma da Previdência. Obra coletiva, exuberante como a lua do haicai.
Imaginava-se que, engatada a primeira marcha, o Planalto viraria uma chocadeira de novas e boas ideias, uma usina de reformas.
Pois bem, o mandato segue avançado. Bolsonaro antecipou o debate sobre sua própria sucessão. E o governo não dispõe de uma marca.
Não há um único e escasso ovo fresco no cesto. Alega-se que o coronavírus desfigurou a agenda. Conversa mole.
O governo perdeu o rumo antes do vírus. Fechou 2019 com um pibinho de 1,1% —coisa de sub-Temer. Na política, a língua de Bolsonaro virou líder da oposição.
No momento, infectado pelo vírus, Bolsonaro cultiva uma agenda feita de inquéritos no Supremo, pedidos de cassação no TSE e a compra da proteção do centrão.
No mais, o presidente toca o seu vídeo-governo. Na penúltima live, anunciou a permanência de um ministro antiambientalista no Meio Ambiente e de um general paraquedista na Saúde.
Paulo Guedes diz que só deixa a Economia se for abatido a tiros. Mas avisa que chamará o caminhão de mudança se o presidente e o Congresso bloquearem as reformas.
Bolsonaro rendeu-se ao liberalismo. Mas é de outro tipo. Libera cargos e verbas para a banda bandalha do Congresso. Libera afagos para o Fabrício Queiroz. Libera isso e aquilo.
O Posto Ipiranga é bom de gogó. Mas falta-lhe o combustível. Acena com a hipótese de apresentar na terça-feira a proposta de reforma tributária prometida há um ano e meio. E jura que irá privatizar quatro grandes estatais em 90 dias.
Bolsonaro atravessa uma quadra delicada. Convive com uma assombração que está presente no seu próprio vaticínio: "Se a economia afundar, acaba o governo..."
Falta ao governo algo que se pareça com um rumo. Ou, por outra, Bolsonaro toma o rumo da crise. Revela-se uma pequena criatura diante do gigantismo da crise.
Vá lá que o capitão continue desejando reeleger-se. Mas é preciso que diga para quê.
Precisaria, de resto, colocar ordem no galinheiro. E botar na praça um governo digno de ser cacarejado.
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