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Josias de Souza

REPORTAGEM

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Decano do STF rejeita ideia de acordo com Câmara: 'Esse cachimbo não fumo'

Colunista do UOL

18/02/2021 04h04

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Novo decano do Supremo Tribunal Federal, o ministro Marco Aurélio Mello declarou que não aceita a ideia de negociar com a Câmara um acordo que leve ao relaxamento da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). "Esse cachimbo eu não fumo", disse o magistrado à coluna. "Não ocupo uma cadeira voltada às relações públicas. Eu sou juiz."

O deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, passou a Quarta-Feira de Cinzas tentando costurar um entendimento. Em troca da abertura da cela, os deputados se comprometeriam a julgar rapidamente no Conselho de Ética da Câmara uma representação contra Daniel Silveira, podendo suspender o seu mandato ou até cassá-lo. Alheio à negociação, Marco Aurélio afirmou que um acordo "desqualificaria o Supremo."

Daniel Silveira foi preso em flagrante na noite de terça-feira, após veicular um vídeo na internet. Nele, em meio a xingamentos, estimula a agressão física a ministros do Supremo, desqualifica a Corte e defende o AI-5, o mais draconiano ato institucional da ditadura militar. Determinada inicialmente pelo ministro Alexandre de Moraes, a prisão do deputado foi avalizada pelas outras dez togas do Supremo.

Na opinião de Marco Aurélio, a Câmara ficará mal se não referendar a prisão. Algo que depende dos votos de 257 dos 513 deputados. "Vamos ver o que o Arthur Lira vai conseguir com os seus pares", declarou o ministro. "Eles prestam contas não ao Supremo, mas à sociedade. Embora a memória do brasileiro seja ruim, é preciso lembrar que há eleições de quatro em quatro anos."

Marco Aurélio enxerga as agressões de Daniel Silveira aos magistrados, ao Supremo e à própria democracia como "visão totalitária de uma corrente do populismo de direita. Lamenta que o deputado não tenha recebido nenhum bom exemplo de Jair Bolsonaro, de quem é aliado. O ministro aprovou o silêncio do presidente diante da prisão do deputado. "É uma posição nova. Ele está colocando as barbas de molho." Abaixo a íntegra da conversa:

— Na sessão em que o plenário do Supremo referendou a prisão de Daniel Silveira, o senhor disse que não viu nos seus mais de 40 anos de magistratura nada tão virulento quanto o vídeo divulgado pelo deputado. É isso mesmo? Exatamente. Nunca vi algo tão virulento. Esses fatos têm sido reiterados, de forma cada vez mais estarrecedora. Isso nos leva a uma preocupação maior com o próprio Estado. Não fui conferir, mas ouvi algo muito preocupante. Soube que esse deputado teria sido eleito impulsionado por um Estado paralelo. Um Estado representado pela delinquência, sobretudo pelas milícias. Com todo o seu currículo de transgressões, acabou eleito. Tudo o que diz é muito chulo. Quando me mandaram o vídeo não acreditei. Fiquei perplexo.

— Que efeitos a prisão do deputado pode produzir? Creio que a prisão tem que ressoar. Convém lembrar que foi confirmada pelo Supremo a uma só voz.

Acha que o uníssono do Supremo ecoará na Câmara? Antes, a Câmara se defrontaria com um ato individual do ministro Alexandre de Moraes. Poderia vir a suspender esse ato. Agora, é um ato de todo o colegiado, sem qualquer voto divergente. Penso que os deputados federais e a própria direção da Câmara tem que se preocupar com a repercussão junto à sociedade.

Não crê em reversão da prisão no plenário da Câmara? A Constituição está em pleno vigor. Pelo artigo 53, os deputados podem afastar a prisão. Mas não creio que seja algo aceitável pelos homens de boa vontade. Não tenho a menor dúvida quanto à melhor solução. Se não há nesse caso concreto base para a confirmação da prisão pela Câmara, em que caso haverá?

— Discute-se nos bastidores da Câmara a hipótese de celebração de um acordo com o Supremo. O que acha? Esse cachimbo eu não fumo. Não ocupo uma cadeira voltada às relações públicas. Sou juiz. Terminarei em julho meus dias de juiz. Não pretendo mudar meu modo de agir. Que acordo faríamos? Um acordo para passar a mão na cabeça desse rapaz? O Supremo não pode fazer acordo. Não se pode dar o dito pelo não dito. Isso desqualificaria o Supremo, última trincheira da cidadania. Vamos ver o que o Arthur Lira vai conseguir com os seus pares. Eles prestam contas não ao Supremo, mas à sociedade. Embora a memória do brasileiro seja ruim, é preciso lembrar que de quatro em quatro anos há eleições.

— A decisão do Supremo foi mais rápida do que o convencional, não? Exatamente. Não tivemos aquelas ladainhas. Eles conversaram entre si. Não falaram comigo, porque não admito conversas na minha vida de juiz. Não quero estar atrelado a nada. Quero estar solto na bancada. Mas não tenho a menor dúvida de que os ministros combinaram que confirmariam a prisão. Não somos ingênuos.

— Enxerga a manifestação do deputado como um fenômeno isolado? Vejo como visão totalitária de uma corrente do populismo de direita. Há algo que aprendemos com os nossos pais: o exemplo vem de cima. Ele talvez tenha desejado fazer uma gracinha para o presidente da República.

— O que achou da manifestação do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, usada pelo deputado como pretexto para atacar o Supremo? Para mim, é matéria requentada. Na época do julgamento de um habeas corpus do Lula, o general insinuou que as Forças Armadas estavam preocupadas. Foi entendido na época como uma pressão indevida sobre o Judiciário, tanto que o Celso de Mello fez uma manifestação muito dura. Não tem cabimento. Comandante do Exército deve comandar o Exército.

— A novidade revelada em livro é a admissão de que o Alto Comando do Exército endossou a manifestação do general. O que achou? Não me iludo, eles conversaram entre si. Não tenho dúvida. Nada disso ajuda. Com essas crises, o presidente tende para um grupo de apoiadores. E é um grupo grande. O que se vê é uma fragilização das instituições.

— O que achou do silêncio do presidente Bolsonaro em relação à prisão de um aliado? A postura dele nesse primeiro momento foi correta. Ele é o presidente da República. Esse comportamento é uma posição nova. Está colocando as barbas de molho.