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Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Bolsonaro engasga com jacaré e engole elefante

Getty Images
Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

28/02/2021 05h06

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O coronavírus não é o único agente infeccioso que atormenta o Brasil. Jair Bolsonaro foi infectado por um vírus que elimina do organismo humano as enzimas que produzem o senso do ridículo. Depois de inventar efeitos colaterais inexistentes para retardar a compra da vacina da Pfizer, com registro definitivo da Anvisa, o presidente autorizou o Ministério da Saúde a investir R$ 1,614 bilhão na aquisição de 20 milhões de doses da Covaxin, vacina indiana ainda não testada.

Chama-se Bharat Biotech o laboratório que produz a Covaxin na Índia. É representado no Brasil pela Precisa Medicamentos. Responsável pela negociação com a pasta da Saúde, a empresa é investigada pelo Ministério Público no Distrito Federal por suspeita de fraude na venda de testes anti-Covid para o governo de Brasília. Negócio de R$ 21 milhões.

A Pfizer tenta vender vacinas ao governo brasileiro desde meados do ano passado. O ministro Eduardo Pazuello (Saúde) e sua equipe deram de ombros. Nessa época, Jair Bolsonaro, um presidente sem comprovação científica, apostava que a "gripezinha" seria contida por meio de "tratamento precoce" baseado num coquetel de medicamentos estrelado pela hidroxicloroquina.

'Se você virar um jacaré...'

Em dezembro, quando a vacina da Pfizer começou a ser aplicada no exterior, Bolsonaro soava desconexo. Chamava a segunda onda da Covid de "conversinha", sustentava que a pandemia estava no "finalzinho" e criticava as cláusulas leoninas do contrato oferecido pela Pfizer valendo-se de um enredo fabuloso sobre os hipotéticos efeitos zoogenéticos da vacina:

Eis o que declarou Bolsonaro: "Se você virar um jacaré, é problema de você, pô! Se nascer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso".

O Supremo Tribunal Federal acabara de decidir, num julgamento que consumira duas tardes, que o poder público pode impor sanções a pessoas que não quiserem se vacinar. Defensor da liberdade do cidadão de infectar, Bolsonaro considerou a decisão inócua. "Nem vacina tem, não vai ter pra todo mundo", declarou, como que confessando a própria incompetência.

Programa de vacinação sem vacinas!

O presidente implicou também com a CoronaVac, vacina que chegou ao Brasil graças a uma parceria do laboratório chinês Sinovac com o Instituto Butantan. Declarou que não compraria a "vacina chinesa do João Doria" nem mesmo se a Anvisa aprovasse. A Anvisa autorizou o uso emergencial. E o capitão, a contragosto, teve de autorizar a compra.

Tanta falta de nexo levou o governo a iniciar o plano nacional de vacinação contra a Covid sem vacinas. Mesmo com o complemento das doses da vacina de Oxford, trazidas via Fiocruz, a produção do Butantan resultou numa imunização a conta-gotas. No momento, vacinaram-se cerca de 3% dos brasileiros.

O ritmo de tartaruga manca levou o Senado a colocar em pé uma proposta que inclui uma espécie de artigo-jacaré. Autoriza a União, os estados e os municípios a assumirem os riscos que o contrato da Pfizer transfere para os compradores de vacinas.

Álibi para justificar a inépcia

A permissão do Legislativo é desnecessária, inócua e enganosa. É desnecessária porque não há vestígio de efeitos colaterais dignos de nota nos países em que a vacina da Pfizer foi utilizada em grande escala. Ao contrário, os resultados são alvissareiros.

É inócua porque, havendo reações adversas provocadas por uma vacina com o carimbo da Anvisa, os processos judiciais viriam de qualquer jeito.

A autorização legislativa é enganosa porque sua única finalidade é oferecer a um governo confuso o álibi para justificar a protelação criminosa da compra de uma das vacinas mais eficazes do mercado. Pazuello agora diz que a encrenca da Pfizer subiu do Ministério da Saúde para o Planalto. E começa a alegar que a compra depende de autorização do Congresso. Lorota.

A escassez de lógica chamou a atenção da representação do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União. O subprocurador-geral Lucas Furtado pediu ao TCU que ordene a suspensão do contrato de compra dos 20 milhões de doses da Covaxin. Pede que a verba seja redirecionada para a "aquisição de vacinas com eficácia comprovada, já existentes no mercado, a exemplo da vacina Pfizer".

A falta que faz uma epidemia de ridículo!

Furtado sustenta que a pasta do general Pazuello opera de costas para a ciência. Realça que a compra de vacina cujos testes não foram concluídos atrasará ainda mais a lenta vacinação dos brasileiros

O subprocurador-geral injeta no debate uma dose de obviedades: "A situação se mostra mais alarmante quando o governo federal critica a aquisição de vacinas já aprovadas para uso no Brasil e que já passaram por todas as fases de testes e agora opta pela aquisição de vacina sem eficácia comprovada, mesmo com opções comprovadamente eficazes disponíveis no mercado".

São devastadores os efeitos do vírus que suprime do organismo de Bolsonaro as enzimas do senso do ridículo. O presidente engasga com um jacaré que só existe na sua cabeça e engole um elefante indiano que até o TCU já enxergou. O brasileiro que aguarda na fila por um par de doses de vacina fica tentado a exclamar: "Ah, que país extraordinário seria o Brasil se de repente, por milagre, baixasse no Planalto uma epidemia de ridículo!"