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Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Poupado pela CPI, Exército viu na cloroquina 'esperança a corações aflitos'

Bolsonaro com caixa de cloroquina, em foto de julho de 2020; medicamento recebeu promoção oficial no Brasil de modo destoante das recomendações científicas internacionais - Reuters
Bolsonaro com caixa de cloroquina, em foto de julho de 2020; medicamento recebeu promoção oficial no Brasil de modo destoante das recomendações científicas internacionais Imagem: Reuters

Colunista do UOL

23/05/2021 03h20

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Receoso de que a CPI da Covid arranhe a imagem do Exército, o comandante da instituição, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, aproximou-se do presidente da comissão, senador Omar Aziz. Os dois trocaram telefonemas antes do depoimento do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde. "Não é o Exército que está vindo aqui", disse Aziz posteriormente. A proteção leva a CPI a negligenciar o que deveria ser um dos focos da investigação: a participação do laboratório do Exército na produção de cloroquina.

A conversão do uso de cloroquina em política pública de saúde no combate à pandemia está entre as prioridades do G7, o grupo majoritário que dita os rumos da CPI. Mas os senadores poupam o Exército. Informações colecionadas pelo Tribunal de Contas da União tornam a blindagem inexplicável. Sob pressão de Bolsonaro, o Exército aumentou a produção de cloroquina em seu laboratório. Comprou insumos com sobrepreço de até 167%.

Em documento datado de 31 de julho de 2020, o Exército apresentou uma explicação sui generis. Reconheceu a ineficácia do remédio: "Até a presente data não há tratamento consagrado pela comunidade científica para a Covid-19". Mas tratou a cloroquina como medicamento eficaz contra o vírus da "aflição" que infectou os "corações" dos brasileiros durante a pandemia.

Lê-se no documento do Exército o seguinte: "Não poderia ser exigível comportamento diverso do Laboratório Químico Farmacêutico do Exército, senão a busca dos insumos necessários e o pronto atendimento às prementes necessidades de produção da cloroquina que, por seu baixíssimo custo, seria o equivalente a produzir esperança a milhões de corações aflitos com o avanço e os impactos da doença no Brasil e no mundo."

Mesmo reconhecendo a ineficácia do remédio e invocando a "esperança" como justificativa para a produção, o Exército alega no documento que aceitou pagar sobrepreço para "salvar vidas". Diz o texto: "Caso não fosse realizada a compra do insumo farmacêutico ativo poder-se-ia estar diante de dano irreparável ou de difícil reparação, pois não haveria a produção do medicamento, cujo objetivo é salvar vidas diante da pandemia causada pelo Covid-19".

Alegou-se, de resto, que "o aumento do preço" dos insumos "é justificado em razão do fato de que tanto a matéria-prima quanto o frete são influenciados pela variação do dólar, aumentando o preço no mercado mundial associado à escassez e grande procura do insumo farmacêutico". Em seu depoimento, o general Pazuello disse não ter encomendado um mísero comprimido de cloroquina. Por ora, a CPI não esboçou interesse em refazer o caminho percorrido pela ordem de Bolsonaro.