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Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Mesmo blindado pelo PGR, Bolsonaro tem desgaste político com novo inquérito

Jorge William / Agência O Globo
Imagem: Jorge William / Agência O Globo

Colunista do UOL

12/07/2021 14h31Atualizada em 12/07/2021 18h03

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Ainda que a Polícia Federal conseguisse fotografar Bolsonaro plantando bananeira dentro de um cofre público, dificilmente o procurador-geral da República Augusto Aras se animaria encaminhar ao Supremo Tribunal Federal uma denúncia criminal contra o presidente. Entretanto, o inquérito aberto nesta segunda-feira pela PF para apurar a suspeita de prevaricação aprofundará o desgaste político que provoca o derretimento do presidente nas pesquisas. Não há blindagem capaz de evitar a abertura de novas rachadinhas na imagem do capitão.

Bolsonaro está acuado. Vive algo parecido com uma crise de identidade. Distribui caneladas nos "pilantras" da CPI da Covid. Mas poupa de sua ira o denunciante Luis Miranda, deputado bolsonarista que foi recebido no Alvorada em 20 de março, junto com o irmão Luis Ricardo Miranda, servidor do Ministério da Saúde. Ainda não explicou por que descumpriu o compromisso de acionar a Polícia Federal ao ser informado pelos irmãos Miranda sobre as irregularidades no contrato de compra da vacina indiana Covaxin.

Bolsonaro tampouco conseguiu desmentir a revelação de que, durante a conversa com os Miranda, chamou a malfeitoria na Saúde de "mais um rolo" do Ricardo Barros, líder do governo na Câmara. A reverência do presidente com a família Miranda, por incomum, revela o pavor de ter sido gravado pelo deputado ou seu irmão, o servidor público que flagrou a tentativa de pagamento antecipado de US$ 45 milhões pelo primeiro lote da Covaxin. Coisa não prevista em contrato.

Nas últimas duas semanas, Bolsonaro e seus operadores sustentaram que não há nada de errado com a compra de 20 milhões de doses da Covaxin. Negócio fechado em fevereiro, com a reserva de R$ 1,6 bilhão para o pagamento. Paradoxalmente, o governo suspendeu a execução do contrato.

Ou seja: o contrato firmado com a Precisa Medicamentos, a empresa de ficha suja com a qual o governo transacionou para importar uma vacina que a Anvisa não avalizou, tornou-se uma peça paradoxal. É um caso único de contrato suspenso por suposta ausência de suspeição.

Bolsonaro alega que não houve corrupção, pois o governo não desembolsou nenhum tostão. Mal comparando, o presidente se comporta como o marido que surpreende sua mulher no motel com o amante e sustenta que não houve traição, pois o flagrante ocorreu antes da conjunção carnal.

Alguém colocou o jabuti numa forquilha da pasta da Saúde: uma fatura de US$ 45 milhões —mais de R$ 200 milhões em moeda nacional. Se o servidor Luis Ricardo Miranda não tivesse levado os lábios ao trombone, o dinheiro teria sido transferido para uma conta em Singapura, em nome de uma empresa não mencionada no contrato. Seria um pagamento antecipado por uma mercadoria indisponível.

Construíram-se, por ora, três versões para blindar Bolsonaro. Numa, o ministro palaciano Onyx Lorenzoni e o coronel investigado Elcio Franco desqualificaram os irmãos Miranda, acusando-os de fazer escândalo com uma nota fiscal falsa. Nessa versão, a fatura de US$ 45 milhões teria sido apenas um "erro", não uma tentativa de assalto.

Essa primeira versão não colou. Verificou-se que o documento dos Miranda era autêntico. Estava disponível no sistema do Ministério da Saúde. Entrou em cena o general Eduardo Pazuello. Foi a ele que Bolsonaro disse ter recorrido para encomendar uma apuração das suspeitas empinadas pelos Mirandas naquela fatídica conversa de 20 de março, um sábado.

As versões do Planalto tropeçam no calendário. Pazuello estava com um pé fora do ministério desde 15 de março, quando Bolsonaro alardeou que substituiria o general pelo cardiologista Marcelo Queiroga. A substituição ocorreu em 23 de março. Portanto, a lógica seria que Bolsonaro tratasse da encrenca com o novo ministro.

Sobreveio a terceira versão, tão inverossímil quanto as outras duas. Informou-se que, ao ser acionado pelo presidente em 22 de março, véspera do seu desembarque da poltrona de ministro, Pazuello delegou ao coronel Elcio Franco a missão de investigar o que ocorrera com o contrato da Covaxin. Então número Dois do Ministério da Saúde, o coronel limpou as gavetas em 26 de março. Antes, concluiu, segundo a versão oficial, que o contrato com a Covaxin estava limpo.

A suposta "investigação" conduzida a jato por Pazuello e Elcio não foi documentada. A coisa toda foi tratada na base do gogó. A dupla concluiu que estava absolutamente regular a aquisição de uma vacina sem o aval da Anvisa, com a intermediação de uma empresa que já aplicara calotes na pasta da Saúde, e com um desembolso antecipado de US$ 45 milhões —quantia a ser depositada no paraíso fiscal de Singapura em nome de uma logomarca não incluída no contrato.

Acusado no Supremo Tribunal Federal do crime de prevaricação, Bolsonaro acredita que as revelações do deputado Luis Miranda não tisnaram sua fama de paladino do combate à corrupção. Pesquisa Datafolha indica o contrário. A maioria dos brasileiros avalia que há corrupção no governo (70%), inclusive no Ministério da Saúde (63%) .—com o conhecimento de Bolsonaro (64%).

Num ambiente assim, tão corrosivo, a provável blindagem a ser fornecida por Augusto Aras a Bolsonaro livra o presidente de uma denúncia criminal. Mas acrescenta novas camadas de ferrugem na imagem de Bolsonaro. O preço político será alto. E já começou a ser cobrado.