Topo

Josias de Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em privado, Lula menospreza volta de Bolsonaro

 O Antagonista
Imagem: O Antagonista

Colunista do UOL

28/03/2023 20h19

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Não são apenas os erros que prejudicam um político, mas a forma como ele age depois de cometê-los. Com sua verborragia, Lula tropeçou na própria língua ao prolongar na semana passada a estadia do rival Sergio Moro nas manchetes. Nesta semana, comete novo erro de avaliação. Menospreza em diálogos privados os efeitos políticos do retorno de Bolsonaro ao Brasil. Arrisca-se a morder a língua.

Refugiado há três meses na Flórida, Bolsonaro programou para a manhã de quinta-feira seu desembarque em Brasília. Encontrará um país diferente. No dia seguinte, 31 de março, os quarteis não celebrarão o golpe militar de 64. Os militares ruminam seu bolsonarismo em silêncio. Removeram-se os escombros em setores como meio ambiente, relações exteriores, cultura, saúde e educação. Daí o desdém de Lula.

Lula fala bem de si mesmo com uma desenvoltura que o impede de enxergar a principal debilidade do seu governo. Em três meses, o Planalto divertiu a plateia com a cenografia de solenidades em que foram recriados programas de antigas administrações petistas. Mas Lula não levou à vitrine nenhuma proposta econômica.

No debate sobre a nova regra fiscal, Lula avalizou o fogo amigo petista contra Fernando Haddad, desidratando sua autoridade. O ministro da Fazenda rala para obter nesta quarta-feira autorização para expor o que chama de "arcabouço fiscal". Os dicionários ensinam que arcabouço é esqueleto. Sob Lula, a ossatura virou fantasma. O governo demora a expor o espectro escondido embaixo do lençol.

A fórmula do crescimento da economia inclui muitos ingredientes. A hesitação não é um deles. Se Lula lidasse com opositores convencionais, a vacilação econômica seria apenas lamentável. Com Bolsonaro do outro lado do cercadinho, o vácuo torna-se imperdoável. Com a faca do bolsonarista Arthur Lira na jugular, o vazio é um convite à elevação do preço da chantagem.

Em condições normais, Bolsonaro ressurgiria do ostracismo cavalgando o pangaré de sua administração ruinosa. À espera da inelegibilidade, amargaria em praça pública cobranças sobre joias das arábias. Mas Lula parece decidido a fornecer material para o antecessor embaralhar o jogo.

Lula escora seu descaso na convicção pessoal de que Bolsonaro já não dispõe do apoio que se expressou nos 58,2 milhões de votos que colecionou em 2022. Pode ser. Mas ainda não surgiu uma voz conservadora capaz de ameaçar a liderança nacional do capitão nesse nicho do eleitorado.

Maior ou menor, a base popular de Bolsonaro não deixou de existir. Dono da maior bancada na Câmara, o Partido Liberal de Valdemar Costa Neto dispõe de caixa para financiar com verbas públicas as maquinações de Bolsonaro e de sua milícia digital.

Se o 8 de janeiro serviu para alguma coisa foi para demonstrar que uma banda do apoio a Bolsonaro —violenta e golpista— permaneceu no mundo da terra plana mesmo depois da derrota. Se Lula descuidar do fator econômico, em algum momento o ingrediente democrático pode ficar parecendo algo secundário.