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Da violência doméstica ao desemprego, coronavírus é mais cruel com mulheres

Uma profissional de saúde transporta o corpo de uma pessoa para um caminhão refrigerado durante o surto de doença por coronavírus em Manaus - BRUNO KELLY/REUTERS
Uma profissional de saúde transporta o corpo de uma pessoa para um caminhão refrigerado durante o surto de doença por coronavírus em Manaus Imagem: BRUNO KELLY/REUTERS

Colunista do UOL

18/04/2020 03h24

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Por Juliana de Faria*, especial para o blog

Mulheres e meninas estão enfrentando um severo aumento da violência doméstica e sexual, em decorrência do isolamento social - em quatro dias de confinamento, houve um aumento de 50% dos casos no RJ. Os serviços garantidos por lei lhes faltam a esta hora - em São Paulo, nas primeiras semanas de isolamento, os abortos legais foram postergados. Mulheres em trabalho de parto precisam parir sem acompanhante, e com acesso a serviços médicos ainda mais restritos, aumentando as taxas de mortalidade materna - todos os dias, aproximadamente 830 mulheres morrem por causas evitáveis relacionadas à gestação e ao parto no mundo.

No âmbito financeiro, vislumbram dificuldades com renda e desemprego, sendo maioria em ocupações informais mal remuneradas (71% das empregadas domésticas não têm carteira assinada, portanto estão descobertas pela legislação em momentos de calamidade como agora). Vivem a sobrecarga com os cuidados domésticos e dos filhos. E, agora, dos doentes não hospitalizados.

Um cenário de pandemia traz medo, confusão, insegurança e desamparo a todos os que o vivenciam. Mas não se deixem enganar: as consequências geradas pela Covid-19 recairão prioritariamente sobre as mulheres, sobretudo aquelas em maior situação de vulnerabilidade.

Infelizmente, conceitos como equidade, segurança, autonomia e independência femininas, que se manifestaram em tantas ações e projetos nos últimos anos no Brasil, estão sendo descartados rapidamente como questões supérfluas diante da crise sanitária. O momento pede, de fato, foco para que a sociedade consiga conter mortes e infecções causadas diretamente pelo novo vírus. Só que agora, mais do que nunca, é urgente exigirmos uma consciência ampla do impacto agressivo - e de longo prazo - que uma pandemia trará.

Basta olharmos para e aprendermos com o passado: o surto de Ebola em países africanos desenhou um cenário de terror para mulheres e meninas, com sequelas até mesmo no aumento da exploração sexual de crianças e adolescentes, bem como o maior número de casamentos de crianças (pois muitas perderam familiares e provedores), gravidezes precoces e casos de violência doméstica.

Base da sociedade

As questões são amplificadas pelo fato das mulheres serem frequentemente o principal - senão o único - pilar de apoio e sustentação de filhos, famílias e comunidade. São mães, esposas, enfermeiras, cozinheiras, professoras, faxineiras. Ao todo, 92% das pessoas (5,7 milhões) responsáveis pelo trabalho doméstico remunerado são mulheres, das quais 3,9 milhões são mulheres negras. Na base da pirâmide econômica, mulheres e meninas, principalmente as que vivem em situação de pobreza e pertencem a grupos marginalizados, dedicam gratuitamente 12,5 bilhões de horas todos os dias ao trabalho de cuidado. A instabilidade delas é a fragilidade de todos ao seu redor.

O resultado pode ser um contexto em que as mulheres se tornem, dada a pressão econômica e social, presas, dependentes, paralisadas e impotentes. Perderemos a sensatez e salubridade da sociedade.

A hora de agir

Em momentos de emergência como o atual, existe uma maior facilidade à tomada de decisões drásticas. Acordos que demorariam anos são feitos em poucas horas. Estes momentos catalisadores geralmente têm sequelas catastróficas para as mulheres a longo prazo, mas se tiverem lentes de gêneros, de raça, de classe e outras intersecções, podem ter resultados positivos. Vejam como, empurrada pela necessidade da quarentena, São Paulo enfim liberou o Boletim de Ocorrência on-line para ser feito em casos de violência doméstica.

É por isso que não podemos deixar a questão da mulher para depois. Precisamos discutir agora, enquanto as decisões estão sendo tomadas, para que sejam compatíveis com a sociedade na qual queremos viver. E na qual queremos permanecer vivas.

E existem muitas ações possíveis de serem tomadas e todos os atuantes da sociedade - setor privado, setor público, sociedade civil organizada e não-organizada - têm seu papel e sua responsabilidade nessa frente. Mais do que nunca, precisamos nos unir e mostrar que nosso compromisso com essa agenda é inegociável.

As organizações irmãs Think Olga e Think Eva lançaram o relatório "Mulheres e Pandemia: Os Agravantes de Desigualdes, Os Catalisadores de Mudanças" com os principais desafios das mulheres frente à crise econômica e de saúde que vivemos, bem como alguns possíveis caminhos que estão fazendo a diferença no mundo.

(*) Juliana de Faria, jornalista, é diretora de impacto das organizações irmãs Think Olga e Think Eva que têm a missão de sensibilizar a sociedade para as questões de gênero e intersecções, além de educar e instrumentalizar pessoas que se identifiquem como agentes de mudança na vida das mulheres.