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Leonardo Sakamoto

Aprovação de Bolsonaro na pandemia passa pelo apoio de empreendedor popular

Bolsonaro exibe caixinha com cloroquina - Adriano Machado/Reuters
Bolsonaro exibe caixinha com cloroquina Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

04/10/2020 01h19

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Resumo da notícia

  • Declarações de Bolsonaro de que é preciso 'tocar a vida' na pandemia expressa o que tem feito parte de trabalhadores e comerciantes na periferia de SP
  • Entre comerciantes considerados não-essenciais, medidas de Bolsonaro de rechaço à quarentena tiveram especial apreço.
  • Ao mesmo tempo, acusações de 'fascista' e 'golpista' não causaram impacto por passar longe da realidade desses empreendedores populares.
  • Pandemia precarizou através da intensificação do teletrabalho e lembrou que categorias essenciais são as mais arriscadas e as que menos remuneram.

Por Henrique Costa, especial para a coluna*

Com 36 anos, Tiago Fonseca abriu sua loja de presentes em Santo Amaro, Zona Sul da capital paulista, em plena pandemia. E não era a primeira: ele tem mais três comércios no periférico bairro do Jardim Ângela. Há cerca de cinco anos, deixou seu emprego de gerente em uma conhecida assistência técnica de produtos automotivos, onde tinha carteira assinada e nenhuma queixa.

Tiago é formado em recursos humanos, com pós-graduação em psicologia na mesma universidade privada localizada ali perto, no Largo Treze. Completou seus estudos sem nenhuma bolsa ou financiamento por escolha própria, já que tinha condições de pleitear. Apesar de não exercer a profissão, acredita que sua formação universitária é fundamental para lidar com pessoas e conhecer futuros parceiros.

Sua loja na rua Barão de Duprat foi resultado de ousadia e planejamento, conta. De fato, pelo menos até o momento da entrevista, Tiago afirmava ter aumentado seu faturamento durante a pandemia, vendendo pelo WhatsApp e pelo Facebook enquanto as lojas de roupas continuavam fechadas. Ele manteve os quatro funcionários das lojas do Jardim Ângela em casa, pagando metade do salário, mas não demitiu ninguém. Ele mesmo fazia as entregas, até 5 km distante.

Na semana em que o Brasil ultrapassaria a marca de 100 mil mortos pelo novo coronavírus, Jair Bolsonaro ensaiou lamentar o fato, mas em uma de suas tradicionais lives afirmou que é preciso "tocar a vida", o que, de todo modo, reverbera o que tem sugerido desde o começo da pandemia.

Por insensível que a declaração possa parecer, ela expressa exatamente o que tem feito a quase totalidade dos trabalhadores e comerciantes na periferia da capital paulista. E talvez, justamente por isso, o controverso presidente mantenha bons número de popularidade mesmo desdenhando da doença e dos críticos à maneira como conduz o seu enfrentamento. O último levantamento do Ibope aponta que ele atingiu 40% de aprovação.

A socióloga Melinda Cooper, analisando o contexto americano, acredita que a valorização da família diante da retirada do Estado e da expansão das políticas de crédito explica a união possível entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo social. Aqui, o perfil mais "bolsonarista" também é o mais empreendedor.

Tiago vê o problema do comportamento do presidente por outro ângulo: justamente por ser como é, Bolsonaro terá problemas para seguir no poder. Sua falta de postura presidencial, na visão desse lojista, parece ser um problema não para as classes populares, mas para os donos do dinheiro e para a mídia.

Não que Bolsonaro desperte grandes paixões entre eles, mas a maioria, quando o critica, aponta para o destempero com que ele costuma se expressar, especialmente contra os repórteres.

Dilson, um baiano de 50 anos que deixou seu emprego de segurança com carteira assinada em um condomínio para se tornar camelô, e depois dono de uma pequena sala onde vende os mesmos produtos nos sete dias da semana, repudiou com veemência as grosserias dispensadas aos funcionários de mídia, sobretudo porque eles são "empregados", ou seja, trabalhadores como ele.

Acusações de "fascista" ou "golpista" contra Bolsonaro passam longe da realidade desses empreendedores populares, que via de regra aprovam seu governo e sua condução da crise causada pelo novo coronavírus. Sobretudo entre os comerciantes considerados "não essenciais", sua defesa da manutenção da economia e seu rechaço às medidas de confinamento social têm especial apreço.

Empreendedorismo: do lulismo à pandemia sob Bolsonaro

A pandemia de covid-19, que progressivamente alcançou o mundo todo, interrompeu fluxos financeiros, interpelou governantes e cientistas e implodiu as rotinas e os projetos de vida de literalmente bilhões de pessoas que se viram subitamente impedidas de trabalhar. Mais importante, o vírus não cessou de matar todos os dias desde que surgiu em Wuhan, em meados de janeiro de 2020.

No Brasil não foi diferente, mas com peculiaridades diretamente resultantes da ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República e da mutação do lulismo. Lulismo, essa narrativa maleável que, entre políticas públicas e alguma redução na desigualdade da renda do trabalho, pretendeu transformar a sociedade brasileira numa "nova classe média" e fez com que jovens trabalhadores precários das periferias, viradores em geral, pequenos empresários seguidores da teologia da prosperidade e moradores dos enclaves cosmopolitas altamente qualificados e deliberadamente sem vínculos formais fossem atirados numa mesma categoria, a dos "empreendedores".

Na situação-limite que se abateu com a pandemia, esse discurso dá um passo adiante, pois a precarização do mundo do trabalho aparece justamente na intensificação do teletrabalho, ainda que a experiência vivida dos trabalhadores continue distante. Ou seja, a dessocialização pelo trabalho precário mostra agora sua face mais "democrática", ao atingir outras ocupações outrora pouco vulneráveis aos seus impactos.

"Liberto do relógio de ponto, da baia de um escritório, da figura do gerente", afirma Ludmila Abílio, em "Uberização: A era do trabalhador just-in-time?", o trabalhador "tem seu tempo de trabalho e sua produtividade altamente controlados por novos mecanismos, como os das metas e entregas por produto".

Visto como privilégio durante a pandemia, o home office — assim como os serviços de entrega por aplicativos, característicos do trabalho uberizado — integra um mesmo sistema de intensificação do trabalho.

Outro ponto é que comércios, escolas, restaurantes, cinemas e qualquer estabelecimento público ou privado sujeito a gerar aglomerações — potencializando, portanto, o espalhamento do vírus — e que não fosse considerado "essencial" deveriam fechar, eventualmente atendendo por delivery.

E os "essenciais"? A expressão "vida loka", comum na quebrada, ganha na pandemia uma nova dimensão, quando a rotina de entregadores de aplicativos, cobradores de ônibus e profissionais da saúde, entre outros vivendo no limite entre a vida e a morte, revela justamente que as categorias consideradas essenciais são, por sua vez, as mais arriscadas e que quase sempre menos remuneram.

Do home office à vida loka, a lógica que se impõe é a do autogerenciamento.

Do comerciante ao empreendedor e o ceticismo da "nova classe média"

Algumas dezenas de comércios populares funcionavam normalmente, a não ser pelas já habituais máscaras e potes de álcool em gel na entrada das lojas, em meados de agosto, na rua Barão de Duprat, contínua ao Largo Treze e ao Mercado Municipal de Santo Amaro. A quase 30 km de distância, em Parelheiros, extremo sul da cidade, também estavam abertos os comércios populares de Vargem Grande, caracterizado pelas ruas de terra batida e por estar situado sobre a Cratera de Colônia, povoada por ocupações irregulares onde vivem cerca de 50 mil pessoas.

O empreendedor, como fenômeno que atravessa as classes sociais, corporifica as contradições do discurso da nova classe média e as reelabora subjetivamente. Esse recorte compreendia à época quase metade da população brasileira: segundo o economista Marcelo Neri, o grupo denominado por ele como "classe média" em sentido estatístico, atingia 44,19% do país em 2002.

A narrativa da "nova classe média" foi amplamente difundida nos anos 2010 pela mídia e pelos governos, e triunfou num país da periferia do capitalismo que nunca chegou a ter propriamente uma "classe média" no sentido europeu. Não por acaso, Neri se tornaria presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no governo Rousseff.

O sociólogo Ruy Braga vê na frustração daqueles que se endividaram nos últimos anos — sobretudo aqueles com renda familiar entre dois e cinco salários mínimos — a fonte dos acontecimentos políticos posteriores. Tais investimentos, incentivados pelas administrações petistas, exacerbaram o sentimento de meritocracia entre as famílias de trabalhadores.

Ainda mais árdua, a esperança daqueles que investiram anos e dinheiro em cursos superiores reemerge encharcada de ceticismo, como observei em minha pesquisa com bolsistas do Programa Universidade para Todos (Prouni) publicada no livro "Entre o lulismo e o ceticismo".

Frustração nas periferias com a "inclusão pelo consumo"

Nas periferias urbanas, a lógica empreendedora que atravessa evangélicos, "bandidos" e atores estatais, transformando todos eles também em operadores de mercado, universaliza a monetarização como único idioma possível da gestão do conflito social e urbano, como destaca Gabriel Feltran, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, em seus trabalhos.

No Brasil pós-lulista, marcado pela crise econômica profunda e pelo esfacelamento das políticas públicas, a política que emerge é mediada pela precariedade e pela frustração com a "inclusão pelo consumo", restando apenas o "empreendedor" em suas múltiplas versões.

O empreendedorismo popular existe aos milhares na periferia paulistana e, mais ou menos bem-sucedidos, se identificam entre si pela necessidade de gerar renda, ou seja, o desafio de movimentar a economia em um lugar onde quase não há empregos qualificados e nem geração de valor endógeno.

Inclui aqueles que se veem como empreendedores e buscam a atenção do centro geográfico e econômico da cidade (pela ideia de "impacto social"); aqueles que, à margem desse discurso, replicam o entusiasmo pelo empreendedorismo; os comerciantes, à maneira antiga; e os informais e empreendedores por necessidade.

A determinação em batalhar e se transformar quando necessário é o fundamento desse empreendedorismo popular, que não se deixa abater e encontra soluções quando a situação exige. É assim também com os jovens admiradores do empreendedorismo, mas o que os diferencia é a ambição e a valorização do conhecimento.

Por fim, a responsabilidade pelo descontrole da doença não é atribuída ao presidente, e mesmo que a pandemia preocupe os empreendedores, a percepção de que ela está passando, mesmo que ainda não exista vacina, é compartilhada por todos.

Por outro lado, é plausível que seja o seu comportamento, rompendo a ética e o respeito que deve existir entre trabalhadores e patrões, elemento de especial desgaste para sua imagem nas periferias e seus velhos e novos viradores.

(*) Henrique Costa, cientista político, autor do livro "Entre o lulismo e o ceticismo" (Editora Alameda), é doutorando em Ciências Sociais na Unicamp e mestre em Ciência Política da USP. Para mais informações sobre o tema, recomendamos "Entre o 'home office' e a vida loka: O empreendedorismo popular na pandemia".