Topo

Leonardo Sakamoto

Trump cumpre ameaça, tenta invalidar votos e expõe EUA como republiqueta

Colunista do UOL

04/11/2020 07h07

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Os votos da eleição presidencial norte-americana não foram totalmente contabilizados e talvez leve dias até que sejam porque milhões foram enviados antecipadamente pelo correio, como permite a legislação. Mesmo assim, o presidente Donald Trump declarou-se vencedor, atacou a legitimidade dos votos por correio, acusou fraude e disse que vai à Suprema Corte (onde tem maioria) para que a contagem pare. E ao tentar invalidar os votos, golpeia a democracia norte-americana.

No começo da manhã desta quarta (4), ele estava à frente na contagem de votos em Wisconsin, Michigan, Pennsylvania (estados decisivos, que se alinham ora a democratas, ora a republicanos) e Geórgia, mas com a eleição ainda em aberto, pois a diferença com o candidato democrata estava diminuindo. O voto enviado pelo correio, prática incentivada por Joe Biden por conta da pandemia, pode mudar o cenário.

Grandes cidades como Detroit, em Michigan, consideradas fortalezas democratas, ainda têm votos a despejar. Trump sabe disso e quer que a votação se encerre enquanto está na frente.

"Nós vamos à Suprema Corte, queremos que todos os votos parem, não queremos que os votos sejam encontrados até as 4 da manhã. É um momento triste", afirmou o presidente. "Isso é uma enorme fraude. É uma vergonha para o nosso país. Francamente, nós ganhamos esta eleição."

Independentemente de quem ganhe, deve ser uma vitória apertada dentro do bizarro sistema eleitoral norte-americano - forjado, no século 19, para garantir que uma elite de delegados, escolhida por estado, decidisse quem seria o "iluminado" que guiaria a nação, evitando entregar o destino do país ao resultado do voto direto e popular.

Mas não há indícios de fraude e tudo transcorreu relativamente sem problemas nos dias que antecederam esta terça (3) - nos Estados Unidos, a votação começa semanas antes do dia da eleição.

Apesar de prevista e anunciada, a estratégia de Trump de colocar em dúvida o sistema eleitoral é irresponsável pela possibilidade de distúrbios sociais irromperem em um país que segue deflagrado por protestos antirrascistas contra uma polícia que mata e manifestações de supremacistas brancos armados até o dentes.

Age dessa forma seguindo a cartilha utilizada por políticos autoritários que tentam dobrar as instituições às suas necessidades, acusando-as de estarem podres ou de participarem de uma conspiração contra eles. Considerando-se que se apresentam como a única escolha lógica e racional, a derrota é sempre uma jogada do sistema contra a redenção que representam.

A situação, típica de estados autoritários ou de repúblicas com democracias muito jovens ou falidas, já ocorreu recentemente por aqui. Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou e reafirmou na eleição de 2018 que não reconheceria resultado que não fosse o de sua própria eleição.

Manteve tal comportamento como presidente. Sem apresentar evidências, afirmou, em março deste ano, que havia sido eleito no primeiro turno, mas foi roubado. "Pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu fui eleito no primeiro turno mas, no meu entender, teve fraude", disse o presidente.

Nunca mostrou nada, repetindo apenas a ladainha vazia de que a urna eletrônica é sujeita a fraudes.

"Fraude" comete, em verdade, o candidato que se nega a reconhecer o resultado das urnas ou tenta impedir que a vontade popular venha a público. Quando isso atinge o país que se apresenta como guardião das democracias, ditaduras e governos autocráticos ao redor do mundo riem diante da hipocrisia e do ridículo.

O Complexo do Pombo Enxadrista é usado para descrever o comportamento de algumas pessoas que, sem argumentos fundamentados, agridem o adversário, tentam colocar a legitimidade da disputa do qual fazem parte em dúvida e abandonam a discussão, dizendo que foram elas as vencedoras. Ou, em outras palavras, agem como um pombo jogando xadrez: derruba as peças, defeca no tabuleiro e sai voando cantando vitória.

O problema é que, neste caso, o tabuleiro é a cabeça de um país inteiro. E, talvez, do mundo.