Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Defendido por Daniel Silveira, AI-5 nasceu para punir discurso de deputado
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A polêmica do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), que atacou o Supremo Tribunal Federal e a democracia e foi preso, guarda uma inesperada conexão com outra polêmica que está na gênese do AI-5. Mas com os sinais invertidos.
Em fevereiro de 2021, um deputado do Rio, que também é policial militar, aproveitou seu mandato para promover a violência e defender generais golpistas. Já em setembro de 1968, um deputado nascido no Rio usou o seu mandato para rechaçar a violência de policiais militares empregada para cumprir a política de generais golpistas.
Silveira foi detido, nesta terça (16), por ordem do ministro Alexandre de Moraes, por veicular um vídeo com ameaças e calúnias a ministros do STF. Ele também defendeu o AI-5, o mais violento ato institucional da ditadura militar, que deu poderes ao Poder Executivo para fechar o Congresso Nacional e o STF, endurecer a censura e descer o cacete geral.
Isso ocorre em meio à troca de farpas entre o general Villas Bôas (que, em 2018, havia postado no Twitter uma ameaça ao Supremo caso Lula não fosse preso), e o ministro do STF, Edson Fachin, que criticou o general - com três anos de atraso, na esteira do lançamento de um livro de memórias do militar.
Minutos depois do próprio Silveira alertar para a sua prisão, as redes bolsonaristas passaram a exigir a sua libertação em nome da liberdade de expressão e da liberdade de tribuna parlamentar. O que não deixa de ser contraditório, uma vez que o AI-5 veio para cassar essas duas liberdades.
No dia 2 de setembro de 1968, o jornalista e deputado federal Márcio Moreira Alves, do MDB do extinto Estado da Guanabara (que existiu na área do atual município do Rio de Janeiro), fez um discurso desafiando o Exército e conclamando a população a não participar dos festejos do 7 de setembro e às mulheres a não se relacionarem com militares.
Ele protestava contra a invasão da Universidade de Brasília (UnB), que terminou com estudantes espancados por PMs. Ironicamente, Moreira Alves havia sido adversário do governo João Goulart e apoiou o golpe militar no seu início, passando a denunciar torturas contra presos políticos quando o regime mostrou os seus dentes.
Como não havia internet, pelos quartéis "viralizaram" cópias em papel do seu discurso, causando indignação pelo que foi visto como uma ofensiva contra os "brios e a dignidade das Forças Armadas".
A ditadura pediu ao STF a cassação do mandato do deputado "pelo uso abusivo do direito de livre manifestação e pensamento e injúria e difamação das Forças Armadas". A corte solicitou, então, que a Câmara autorizasse a abertura de processo.
O que foi rejeitado por 216 a 141 em 12 de dezembro.
O episódio acabou sendo usado como pretexto para os planos de endurecimento do regime. Há historiadores que defendem que o ditador Artur da Costa e Silva era contra, mas por decisão quase unânime do Conselho de Segurança Nacional, botou sua assinatura no papel, tornando-se o infame pai do AI-5, decretado no dia 13.
Com o ato, uma leva de deputados federais foi cassada ainda em 1968, entre eles o próprio Moreira Alves - que se exilou no Chile, na França, em Portugal, voltando ao Brasil após a lei da Anistia, em 1979.
A história ocorre como tragédia, depois como farsa. Ou como tragédia e, depois, como piada de mau gosto. Pois, com 53 anos de diferença, dois parlamentares fazem polêmicos discursos tendo militares como elefante na sala - um deles para defender democracia, outro para atacá-la sem dó.
Em 15 de outubro de 2018, em entrevista à Rádio Jornal, de Barretos, o então candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, afirmou que o objetivo de seu governo seria fazer "o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás". Vai, dessa forma, conseguindo, buscando reescrever a história à sua imagem e semelhança.
Discurso de Márcio Moreira Alves, em setembro de 1968
"Senhor presidente, Senhores deputados. Todos reconhecem, ou dizem reconhecer, que a maioria das Forças Armadas não compactua com a cúpula militarista, que perpetra violências e mantem este país sob regime de opressão. Creio haver chegado, após os acontecimentos de Brasília, o grande momento da união pela democracia. Este é também o momento do boicote. As mães brasileiras já se manifestaram. Todas as classes sociais clamam por esse repúdio à violência.
No entanto, isso não basta. É preciso que se estabeleça, sobretudo por parte das mulheres, como já começou a se estabelecer nesta Casa por parte das mulheres parlamentares da Arena, o boicote ao militarismo. Vem aí o 7 de Setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem juntos com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai e cada mãe se compenetrasse de que a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile.
Esse boicote pode passar também às moças, aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje no Brasil com que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa aqueles que vilipendiam a Nação. Recusassem a aceitar aqueles que silenciam e, portanto, se acumpliciam.
Discordar em silêncio pouco adianta. Necessário se torna agir contra os que abusam das Forças Armadas falando e agindo em seu nome. Creio senhor presidente, que é possível resolver esta farsa, esta democratura, este falso impedimento pelo boicote.
Enquanto não se pronunciarem os silenciosos, todo e qualquer contato entre civis e militares deve cessar, porque só assim conseguiremos fazer com que este país volte à democracia. Só assim conseguiremos fazer com que os silenciosos que não compactuam com os desmandos de seus chefes, sigam o magnífico exemplo dos 14 oficiais de Crateús que tiveram a coragem e a hombridade de, publicamente, se manifestarem contra um ato ilegal e arbitrário de seus superiores."