Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Bolsonaro atacava Bolsa Família por achar que pobre não gosta de trabalhar
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Ao invés de aprimorar o Bolsa Família, um programa de sucesso reconhecido internacionalmente e que tirou milhões da fome, o governo federal está substituindo-o pelo esburacado e incerto Auxílio Brasil. Para além do óbvio marketing eleitoreiro da ação, Bolsonaro quer enterrar algo que nunca entendeu e, portanto, sempre foi alvo de seu ódio.
Ódio que ficou claro pelos constantes ataques.
"O Bolsa Família é uma mentira, você não consegue uma pessoa no Nordeste para trabalhar na sua casa. Porque se for trabalhar, perde o Bolsa Família", afirmou em entrevista à Record News, em 2012.
"O cara tem três, quatro, cinco, dez filhos e é problema do Estado, cara. Ele já vai viver de Bolsa Família, não vai fazer nada. Não produz bem, nem serviço. Não produz nada. Não colabora com o PIB, não faz nada. Fez oito filhos, aqueles oito filhos vão ter que creche, escola, depois cota lá na frente. Para ser o que na sociedade? Para não ser nada", disse em entrevista ao documentarista Carlos Juliano Barros, em 2015.
"Não tem como tirar o Bolsa Família do pessoal, como alguns querem. São 17 milhões de pessoas que não têm como ir mais para o mercado de trabalho. Com todo o respeito, não sabem fazer quase nada", explicou, na última quarta (27), em entrevista à TV A Crítica.
Bolsonaro nunca entendeu o Bolsa Família. Acha que é distribuição de dinheiro pura e simples para vagabundo ou incapazes. Não vê que esmagadora maioria dos beneficiários do Bolsa trabalha sim e não quer ficar na miséria, mas precisa de uma mãozinha para comer enquanto isso não é possível - afinal, nem todos tiveram acesso à herança ou a oportunidades de educação de qualidade.
Aliás, Jair não compreende que a transferência condicionada à frequência escolar e à vacinação dos filhos do Bolsa Família, junto com um atendimento humanizado por meio da assistência social, eleva a qualidade de vida e semeia o futuro dessas famílias, permitindo que cidadãos consigam sobreviver com mais dignidade.
Em sua preconceituosa matriz de interpretação do mundo, o presidente considera que o programa era uma "fábrica inútil de produtores de filhos" porque é assim que ele e uma parcela do país enxergam os pobres: um grupo interesseiro que, diante da oferta de uns caraminguás, prefere parar de trabalhar. Uma avaliação que seria desastrosa se Bolsonaro estivesse em um cargo relevante, como o de presidente da República.
Essa visão também vem acompanhada de outro pensamento muito comum: se eu venci na vida sem a ajuda do Estado, outros milhões também podem. Ou seja, se eu me estrepei a vida toda, outros também devem se estrepar. Solidariedade? Fez xibiu, ninguém sabe, ninguém viu.
No caso de Bolsonaro, há o agravante de que ele é acusado de ter tido a "ajuda" do Estado de várias formas. A mais bizarra delas, à revelia da lei, teria sido desvio de salários de servidores de seu gabinete, as conhecidas rachadinhas.
Ele percebeu que não podia simplesmente acabar com o auxílio emergencial, por mais que os valores de R$ 150, R$ 250 e R$ 375 pagos atualmente sejam apenas uma sombra dos R$ 600/R$ 1.200 do primeiro semestre do ano passado, se quiser ter chances de reeleição. Decidiu colocar algo no lugar do Bolsa. E, aproveitando, acabar com o que tinha de melhor, transformando o programa naquilo que ele mesmo sempre criticou: distribuição de dinheiro com fins eleitorais.
Pois o Auxílio Brasil, da forma como foi apresentado ao Congresso Nacional, não é um Bolsa Família melhorado. O presidente está mudando a natureza do programa (de questionáveis vale-creches até a obrigação de camponeses entregarem parte de sua produção para terem acesso a um auxílio, mesmo que não gerem excedentes), o que vai influenciar em sua capacidade de ajudar pessoas a permanecerem fora da miséria extrema. Mesmo o aumento perseguido por Jair Bolsonaro de R$ 190 para R$ 400, deve durar o tempo de uma reeleição, ou seja, até o final de 2022 - se ele ocorrer.
Caso quisesse colher frutos eleitorais sem desmontar as boas coisas do Bolsa, ele poderia simplificar as regras, zerar a fila de espera (o Consórcio Nordeste estima em 2,2 milhões de famílias no aguardo pelo benefício) e aumentar o seu valor médio, desatualizado. Poderia até rebatizá-lo, não importa, desde que continuasse sendo um programa eficaz por retirar milhões da miséria.
Como eu já disse aqui mais de uma vez, parte da explicação para isso foi dada pelo próprio Bolsonaro em um jantar com lideranças conservadoras, em Washington DC, nos Estados Unidos, em 17 de março de 2019: "o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer".
Primeiro, a terra arrasada. Depois, a construção de um mundo à sua imagem e semelhança. Que, sem dúvida, será mais triste e sombrio por contar com um presidente que quer esmagar aquilo que não consegue entender.