Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Enem 2021: Governo Bolsonaro recomeça a temporada de sacanear estudantes
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Fazer Enem é uma longa corrida de obstáculos, ainda mais quando você é pobre. O governo Jair Bolsonaro, ao invés de ajudar a suavizar o caminho dos estudantes, coloca areia movediça, lagos com jacarés, canhões de raio laser e cercas eletrificadas no meio.
Como a nota do Exame Nacional do Ensino Médio é usada para a seleção em universidades dentro e fora do país, a prova é um momento em que o governo federal deveria garantir segurança e tranquilidade aos estudantes. Mas a gestão Jair Bolsonaro, por incompetência ou sadismo, tem transformado o antes, o durante e o depois em um inferno desde 2019.
Nesta segunda (8), a 13 dias do Enem 2021, 29 servidores do Inep, instituto ligado ao Ministério da Educação, pediram exoneração de seus cargos. Desses, 27 trabalham em áreas ligadas à prova, de acordo com reportagem do UOL. Com essas, são 31 demissões do Inep em uma semana.
No pedido de dispensa, citam a "fragilidade técnica e administrativa da atual gestão máxima do Inep". Danilo Dupas, presidente do órgão, é acusado por servidores de tomar decisões sem critérios técnicos, realizar assédio moral e se omitir de responsabilidades.
O bafafá começa a nova temporada de dores de cabeça imposta pelo governo Bolsonaro aos estudantes. Neste ano, o responsável pela lojinha é o pastor Milton Ribeiro, o ministro da Educação que acredita que crianças com deficiência estudando junto com as demais "atrapalha".
Quando Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, um dos receios quanto ao Enem era a possibilidade de censura por parte do governo. Para ele, o maior problema da prova era uma paranoia vazia com questões com o que ele chama de "ideologia de gênero".
Em novembro de 2018, indignado com uma das perguntas do exame que tratava de dialetos de minorias, prometeu que iria vistoriá-las antes para retirar conteúdo. Em suma, censura. "Podem ter certeza e ficar tranquilos. Não vai ter questão desta forma ano que vem, porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes. Não vai ter isso daí", afirmou.
A realidade apontou, contudo, que o principal problema envolvendo o Enem seria a incompetência aliada à soberba e à falta de transparência.
Com o MEC transformado na Casa da Mãe Joana já sob o ministro Ricardo Vélez Rodríguez, com pessoas que não ficavam no cargo o suficiente para esquentar a cadeira, sem planejamento, comando ou autocrítica e tendo sido loteado com grupos de extrema direita, o ministério tornou-se mais vulnerável a falhas.
O resultado veio a galope. Mais de 170 mil estudantes enviaram reclamações ao MEC por conta de sua nota no Enem 2019.
Alguns registraram representações no Ministério Público Federal, exigindo revisão geral da correção da prova, auditoria transparente nos processos e suspensão da seleção pelo Sisu (o Sistema de Seleção Unificado) enquanto tudo não fosse resolvido. As reclamações pipocaram nas redes sociais logo após o então o ministro Abraham Weintraub ter dito que aquele tinha sido "o melhor Enem de todos os tempos" em 17 de janeiro de 2020.
Aliás, em meio à crise no exame e com reclamações de problemas na plataforma do Sisu, Weintraub se dedicou a ofender os historiadores, espalhar fake news contra jornalistas, postar carta de apoio ao novo partido do presidente (aquele que naufragou sem ter existido), entre outras estripulias.
Quando os problemas do Enem 2019 ainda se faziam sentir, o governo federal veio com outra bomba, mantendo as datas para a realização do Enem 2020, desconsiderando que milhões de alunos do ensino médio de escolas públicas estavam com os conteúdos atrasados devido à pandemia de coronavírus. Foi tomar o caldo de uma segunda onda sem tempo de respirar após a primeira.
O Ministério da Educação chegou ao ponto de veicular uma campanha em que justificava para esses jovens que era legal ser largado à própria sorte. Dizendo que "a vida não pode parar", que "é preciso ir à luta", "se reinventar", "superar", quatro jovens atores pedem para que todos "estudem", "de qualquer lugar", "de diferentes formas", pois "seu futuro já está aí".
Enquanto a vida nas boas escolas particulares seguiu seu curso na pandemia, com plataformas de educação à distância, rico material didático e professores minimamente treinados para aulas pela internet, aulas em realidade virtual, na maioria das escolas públicas, estudantes foram obrigados a entrar em férias. Depois, a se conectar com uma realidade precária de ensino à distância, não por culpa dos docentes e dos gestores educacionais, mas pelas deficiências de parte do sistema público. Muitas casas não tinham acesso à internet, outras nem computador.
Não à toa a "superação" foi cobrada em propagandas do MEC. Isso ajudava a livrar o governo de sua própria responsabilidade em ajudar jovens a alcançarem um futuro melhor. No final das contas, o Enem 2020 teve uma abstenção recorde em meio à pandemia e mais da metade dos 5,8 milhões de inscritos faltou.
Como aqui já disse, há um sistema de poder que utiliza um discurso deturpado sobre o mérito para manter a desigualdade como o elemento que nos define como nação. Pois as pessoas não têm acesso aos mesmos subsídios e direitos para começarem suas caminhadas individuais e, portanto, partem de lugares diferentes. Uns tendo tudo desde sempre, comida e livros. Outros tendo que escolher entre comprar comida ou um livro. E outros levando enquadro da polícia, que acha que eles roubaram o livro de alguém simplesmente por serem negros, após terem feito a escolha de comprá-lo ao invés da comida.
Para o Enem 2021, o governo Jair Bolsonaro decidiu retirar a taxa de isenção de quem faltou no Enem 2020, ignorando os candidatos que não foram com medo de contrair covid-19. Como a inscrição custa R$ 85, um dinheirão para os mais pobres, o exame deste ano teria 3,1 milhões de inscritos, o que representa 53% menos inscritos que em 2020 - o menor número desde 2005.
Com isso, ele seria o mais excludente da última década, com a menor proporção dos que têm renda familiar de até 1,5 salário mínimo e também de negros e indígenas. No Enem 2020, 63,2% eram negros, indígenas e amarelos. O número caiu para 56,4%, em 2021, enquanto a proporção de brancos foi de 34,7% para 41,5%.
Contudo, o governo federal foi obrigado pelo Supremo Tribunal Federal a reabrir o prazo de inscrições aos isentos que faltaram em 2020.
Fazer Enem é uma corrida de obstáculos, ainda mais quando você é pobre, como disse acima. Bolsonaro parece querer deixar claro que só os fortes devem sobreviver.
A menos, é claro, que você tenha o sobrenome "certo". Como mostrou a história da admissão da filha de Bolsonaro no concorrido Colégio Militar de Brasília sem passar pelas provas como os outros mortais, nós temos meritocracia sim. Pena que, por aqui, ela é hereditária.