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Com fim de máscaras, Bolsonaro torce para Brasil esquecer mortos por covid
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O fim da obrigatoriedade do uso de máscaras em ambientes abertos no Estado de São Paulo é boa notícia para Jair Bolsonaro (PL). Apesar de ter sabotado sistematicamente o combate à doença, atacado o uso de máscaras e o distanciamento social, atrasado a compra de vacinas, espalhado mentiras sobre imunizantes, defendido remédios ineficazes para a covid-19, retardado a proteção de crianças, suspendido o auxílio emergencial quando a população mais precisava, ele precisa da volta do cotidiano a algo próximo da normalidade para melhorar seus índices eleitorais.
Claro que a aposentadoria completa do equipamento ainda não é pra já. Mas, para além da retomada da economia e do emprego, a flexibilização da máscara ajuda a afastar um pouco a lembrança de que vivemos nos últimos dois anos uma gestão de crise sanitária catastrófica nas mãos do presidente da República. Gestão que chegou a ser reprovada por mais de 60% do país.
Com o avanço da vacinação e a redução no número de infectados e mortos pela variante ômicron, mais governadores e prefeitos também começam a derrubar a obrigatoriedade da máscara, um dos principais símbolos da pandemia. O Rio, por exemplo, aposentou por decreto o equipamento de proteção - depois que as festas e os blocos de carnaval o aposentaram na prática.
E enquanto o governo de São Paulo derrubava a obrigatoriedade em uma coletiva à imprensa, nesta quarta (9), membros de um grupo bolsonarista de mensagens afirmavam, de forma cínica ou ignóbil, difícil dizer, que finalmente Estados e municípios ouviram o presidente. Desde o começo da pandemia, ele brigou contra o uso de máscaras e foi flagrado sem elas mesmo quando o país registrava mais de 4 mil mortos/dia.
Vale lembrar que após o governo federal tentar impedir a efetivação de quarentenas, governadores e prefeitos foram ao Supremo Tribunal Federal, que apontou que as posições da União, Estados e municípios precisavam ser levadas em conta, e que Jair não poderia tomar tal decisão sozinho. A partir daí e por dois anos, o presidente distorceu o que disse o STF para justificar sua inoperância diante da pandemia.
As investigações da CPI da Covid demonstraram que, se dependesse dele, os brasileiros teriam morrido afogados em cloroquina e sem vacina no braço. Ele, que ignorou ofertas de dezenas de milhões de doses de imunizantes, só se mexeu porque o governador João Doria (PSDB) estava prestes a aplicar a vacina desenvolvida na China e produzida no Butantan nos paulistas.
Jair já disse que a vacina transformava pessoas em jacarés, fazia barba crescer em mulheres, matava adolescentes, causava Aids. Se isso fosse o comportamento de um tiozão na ceia de Natal, uma família racional ficaria horrorizada pela sanidade mental do sujeito. Mas esse comportamento ajudou a manter mobilizada uma parcela do bolsonarismo-raiz. E ele precisa desse pessoal para lutar por ele com unhas e dentes até outubro.
Além do mais, o presidente temia que abandonar o negacionismo significasse um reconhecimento de que fizera tudo errado até então, com consequências criminais e eleitorais. Com isso, dobrou a aposta, usando as vidas dos brasileiros como moeda, chegando à vergonha-mor de defender cloroquina na Assembleia Geral das Nações Unidas.
Por conta do seu comportamento, muita gente não usou máscara. E muitos morreram por isso. E a economia demorou a se recuperar - afinal de contas, se os protocolos de saúde tivessem sido seguidos à risca, as ondas da pandemia teriam sido mais curtas no Brasil. Mas o presidente forçou a barra para que as pessoas tocassem suas vidas normalmente apesar do vírus circulando. Vimos com a variante ômicron que o que afasta as pessoas do trabalho não é a quarentena, mas a doença.
A necropolítica bolsonarista escorreu pela sociedade, chegando à sua base eleitoral, que, fortalecida pelo presidente, mostra que o capricho pessoal vale mais que a saúde coletiva. Há até o registro de pessoas que fizeram ameaças com armas de fogo, que se tornaram facilmente acessíveis durante o atual mandato, pelo direito de não usarem máscaras.
No cálculo eleitoral mórbido do presidente, o lamento pelos 653 mil mortos não será eleitoralmente estridente, pois os óbitos representam 0,31% da população. Para tanto, ele precisa da ajuda do esquecimento coletivo. Resta saber se o Brasil é realmente como ele acredita que seja.
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