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'Escravizados do vinho' no RS narram tortura com choque e spray de pimenta
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Uma operação resgatou de condições análogas às de escravo 207 pessoas que atuavam na colheita e carga e descarga de uvas em Bento Gonçalves (RS). Os trabalhadores denunciam que foram vítimas de ameaças e maus tratos, incluindo o uso de choques elétricos e spray de pimenta. Eles trabalhavam para uma empresa prestadora de serviço contratada pelas vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.
Inicialmente, os órgãos que atuam no resgate haviam divulgado 150 e depois 190 trabalhadores envolvidos. Dos 207, 194 voltaram para a Bahia em ônibus fretados, quatro ficaram na cidade e nove foram para outros municípios no estado.
A empresa Fênix Serviços de Apoio Administrativo, administrada por Pedro Augusto Oliveira de Santana, sediada em Bento Gonçalves, que contratou os trabalhadores, afirmou, em nota à imprensa, que os devidos esclarecimentos serão prestados no decorrer do processo judicial e não compactua com desrespeito aos trabalhadores.
Participaram da operação, além da Inspeção do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Federal. A assistência social do município e a Secretaria de Justiça do Rio Grande do Sul deram apoio no processo de acolhimento de vítimas.
De acordo com coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, Henrique Mandagará, "o nível de agressão física contra os trabalhadores foi o que chamou mais a atenção".
A operação teve início, nesta quarta (22), após um grupo fugir de um alojamento sem condições de higiene onde, segundo relataram, sofriam agressões com choques elétricos e spray de pimenta. Mandagará afirma que a fiscalização apreendeu tasers e tubos de spray de pimenta no local. Vigilância armada era usada para garantir que tudo permanecesse do jeito que o patrão queria.
Trabalhadores eram ameaçados com frequência. Alguns foram informados que, caso faltassem ao trabalho por questões de saúde, teriam que pagar todos os custos de transporte desde a Bahia. Isso fez com pessoas trabalhassem mesmo doentes.
"Um cassetete era usado para manter o portão do alojamento aberto, o mesmo cassetete que depois era empregado para bater nos trabalhadores", conta o auditor fiscal do trabalho Rafael Zan, que também estava na operação. Era uma forma, em sua avaliação, do empregador impor sua disciplina aos trabalhadores.
Segundo a fiscalização, exames de corpo de delito foram feitos e as agressões serão alvo de investigação policial. Zan afirma que foi constatada a presença de trabalhadores machucados, evidenciando maus tratos.
Recrutados na Bahia, eles já chegavam com dívidas de alimentação e transporte e, no alojamento, tinham que comprar produtos a preços muito acima do valor de mercado. Tudo isso era anotado como dívida, o que prendia os trabalhadores aos patrões.
Quando receberam a proposta de emprego, foi prometido a eles salários de R$ 4 mil por mês e boas condições de serviço, como alimentação e alojamento decentes - o que não veio a acontecer. A jornada de trabalho, segundo a fiscalização, chegava a ir das 4h às 21h, configurando uma situação de exaustão. Pagamentos também estavam atrasados.
Para piorar, quem não tinha dinheiro pegava empréstimo a juros que chegavam a 50% durante a safra de um outro aproveitador para poderem comprar itens de primeira necessidade.
Vinícolas não podem dizer que não sabiam da situação, diz MPT
As vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi informaram a imprensa que não tinham conhecimento do ocorrido, que não compactuam com a situação trabalhista encontrada e que os contratos com a empresa Fênix eram apenas para carga e descarga de uvas.
"A cadeia produtiva do vinho só existe se houver o trabalhador trazendo a uva que está no parreiral. As empresas tomadoras de serviço não podem dizer que não sabem o que está acontecendo na ponta, apelar para a cegueira deliberada." A avaliação foi feita à coluna pela procuradora Franciele D'Ambros, vice-coordenadora no Rio Grande do Sul da Conaete, o núcleo do Ministério Público do Trabalho voltado ao combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas. Para ela, há responsabilidade solidária das vinícolas nesse processo.
A expectativa é de que o valor de verbas rescisórias a serem pagas aos trabalhadores supere R$ 1 milhão, isso além de eventuais indenizações.
A procuradora afirmou que a instituição está dialogando com a empresa Fênix e com as vinícolas tomadoras de serviço tanto para o pagamento de dano moral aos trabalhadores e de dano moral coletivo à sociedade quanto para um acordo visando à adequação do comportamento a fim de garantir que isso não volte a se repetir.
Se isso não for possível através de um termo de ajustamento de conduta, será feito por meio de uma ação civil pública apresentada à Justiça.
Além da dimensão trabalhista, o flagrante do trabalho escravo deve abrir uma ação criminal contra os envolvidos. Redução de pessoas à condição análoga à de escravo é crime previsto no artigo 149 do Código Penal, com 2 a 8 anos de cadeia.
Trabalho escravo hoje no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT