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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Operação inédita composta só por mulheres resgata três da escravidão em MG

Dia das Mulheres: Fiscalização formada só por servidoras públicas resgata três da escravidão em MG - Inspeção do Trabalho
Dia das Mulheres: Fiscalização formada só por servidoras públicas resgata três da escravidão em MG Imagem: Inspeção do Trabalho

Colunista do UOL

05/03/2023 10h34

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Três pessoas foram resgatadas da escravidão em um sítio de criação de gado em Bom Jardim de Minas (MG) em uma operação inédita da qual participaram apenas servidoras públicas. A ação, que terminou na sexta (3), é uma alusão ao Dia Internacional das Mulheres, celebrado no dia 8 de março.

Por parte do Ministério do Trabalho e Emprego, foram oito auditoras fiscais, duas agentes administrativas e uma motorista. Pela Polícia Federal, uma delegada e nove agentes. Também teve a participação de uma procuradora do Ministério Público do Trabalho e uma defensora pública da Defensoria Pública da União. Ao todo, 23 mulheres.

"Sempre contamos com mulheres coordenando as equipes, mas desta vez todas as servidoras de todas as instituições eram mulheres. Esperemos que seja a primeira de muitas ações semelhantes", afirma a auditora fiscal do trabalho Andréia Donin, que coordenou a ação. "Já demonstramos que somos capazes de fazer o mesmo trabalho que os homens em qualquer área, da inspeção à segurança."

Para Gislene Stacholski, que também participou da ação, ainda é necessário que eventos como esse ocorram a fim de conscientizar sobre a igualdade. "E, principalmente, para empoderar o trabalho de milhões de mulheres que não têm voz nas suas profissões e se sentem inferiorizadas e oprimidas em seu ambiente de trabalho", diz.

Não é exagero dizer que o sistema público de fiscalização de denúncias de trabalho escravo foi implementado majoritariamente por mulheres a partir de maio de 1995, quando o Brasil reconheceu diante das Nações Unidas a persistência desse crime.

Baseado em grupos especiais de fiscalização móvel, ele foi estruturado pela auditora fiscal Ruth Vilela, que coordenou a Secretaria de Inspeção do Trabalho. E, nos primeiros anos, auditoras como Claudia Marcia Brito, Marinalva Dantas, Valderez Rodrigues e Virna Damasceno chefiaram esses grupos em um momento em que eram comuns ações que se deparavam com violência, ameaças de morte, cadáveres de trabalhadores que tentavam fugir. Juntas, libertaram milhares de pessoas.

De acordo com o ministério, a operação, realizada na semana passada, homenageia tantas servidoras que se dedicam diariamente à promoção de dignidade aos trabalhadores e às trabalhadoras deste país e reforça o importante papel do trabalho da mulher no contexto social.

Dois escravizados trabalhavam desde 2015, outro, desde 2008

Na ação de Minas Gerais, dois dos resgatados eram irmãos e trabalhavam no sítio Serra Verde desde 2015. O terceiro tinha 74 anos e estava há 15 anos.

"Impressionou a condição de miserabilidade a que estavam expostos. Eles não tinham dinheiro para comprar itens mais básicos de higiene e alimentação. Quando chegamos na hora do almoço, tinham apenas arroz e feijão para comer. Segundo eles, se quisessem um ovo, tinham que comprar por R$ 1 cada da proprietária", afirmou Andréia Donin.

Os dois irmãos tinham comprado um lote de 200 metros quadrados da dona do sítio, onde construíram pequenas casas, de acordo com a fiscalização. Mas como não tinham nenhum título para comprovar a propriedade, temiam perder o terreno, um investimento de uma vida inteira, se fossem trabalhar em outro local.

"Então, desde 2015, estão vinculados a essa terra, aceitando trabalhar pelo que era oferecido porque não podiam sair dali", afirma Donin.

A situação do trabalhador de 74 anos era um pouco diferente. "A casa onde morava estava em péssimas condições de conservação e higiene. Tinham alguns poucos móveis velhos, uma cama com colchão sujo e rasgado, tudo ficava jogado. Os animais entravam e saíam do local. O banheiro não funcionava, não tinha água. E ainda guardava veneno para matar carrapatos das vacas dentro do seu quarto", explica a auditora Gislene Stacholski. "Ele recebia R$ 100 por semana."

O total de direitos trabalhistas e verbas rescisórias dos três ficou em R$ 177,5 mil. Mas, segundo a fiscalização, a proprietária do sítio Serra Verde, Paula Marendaz, através de seus representantes, não reconheceu o valor e não pagou os trabalhadores.

Ela fechou um termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público do Trabalho e com a Defensoria Pública da União, ao qual a coluna teve acesso, comprometendo-se a pagar um dano moral de R$ 5 mil para cada um, em dez parcelas, e firmando compromisso de seguir a legislação.

A coluna tentou contato com representantes da proprietária, mas não conseguiu. Quando um posicionamento for enviado, ele será aqui publicado.

Equipe formada apenas por servidoras do MTE, MPT, PF e DPU que resgatou três da escravidão em MG - Inspeção do Trabalho - Inspeção do Trabalho
Equipe formada apenas por servidoras do MTE, MPT, PF e DPU que resgatou três da escravidão em MG
Imagem: Inspeção do Trabalho

Brasil resgatou mais de 2,3 mil escravizadas entre 2003 e março de 2022

O Estado brasileiro resgatou da escravidão contemporânea pelo menos 2.325 mulheres de 2003 a março de 2022, de acordo com dados da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Previdência. O número representa quase 6% do total de flagrados nessas condições no período.

De acordo com os dados, 61% declararam ser negras - taxa maior que os 56% de negros na sociedade brasileira estimados pelo IBGE. Ao todo, 36% nasceram na região Nordeste e 53% tinham entre 18 e 39 anos. Vale ressaltar que 3% das resgatadas tinham entre 15 e 17 anos e 0,6% entre dez e 14 anos. Do total, 56% eram iletradas ou tinham menos que cinco anos de estudo.

A agropecuária foi a atividade principal das resgatadas, seguida pelo trabalho na cozinha e costureira em confecções. Em 2021, o serviço doméstico envolveu 27 vítimas - no ano anterior, haviam sido apenas três.

De acordo com o estudo "Trabalho escravo e gênero: quem são as trabalhadoras escravizadas no Brasil?", produzido pela Repórter Brasil, com o apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), essa condição de minoria contribuiu para que elas permanecessem invisíveis.

O resultado disso é que as especificidades decorrentes da questão de gênero se mantêm há décadas obscurecidas e, até mesmo, desconsideradas por políticas dedicadas à erradicação do trabalho escravo no Brasil, reforçando desigualdades. Nas frentes de trabalho no campo, não raro a atividade doméstica não é reconhecida como trabalho, por exemplo.

O estudo também aponta que essa invisibilidade tem consequências graves como a subnotificação nos dados oficiais sobre mulheres escravizadas, o que, por sua vez, impede a elaboração de políticas públicas que considerem a questão de gênero. Problema que toca especialmente as mulheres exploradas em atividades sexuais, em que acabaram categorizadas como "dançarinas" ou "garçonetes".

Trabalho escravo hoje no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT