STF vota pelo retrocesso ao permitir crucifixos e santos em prédio público
É um retrocesso que o Supremo Tribunal Federal tenha formado maioria, nesta segunda (25), para permitir crucifixos, imagens de santos e outros símbolos religiosos em prédios públicos.
Os ministros afirmaram que, ao contrário do que defendeu o Ministério Público Federal, a presença desses elementos não batem de frente com o princípio do Estado laico. Defendo o contrário, que sua presença em instituições que decidem a vida e a morte de pessoas é discriminatória por natureza e pode mudar sim a percepção da interpretação e execução das leis.
A questão da retirada de crucifixos, imagens e afins de repartições sempre gerou polêmicas a partir do momento em que um Estado se afirma laico. A França retirou os símbolos religiosos de sedes de governos, tribunais e escolas públicas no final do século 19. Nossa primeira Constituição republicana já contemplava a separação entre Estado e Igreja, mas estamos mais de 130 anos atrasados em cumprir a promessas dos legisladores de então.
Um dos principais argumentos usados tantos no julgamento quanto nas discussões sobre o tema é que esses símbolos fazem parte de nossas tradições culturais, nossa identidade nacional, nossas raízes históricas.
A questão é que a escravidão, a sociedade patriarcal e a desigualdade social estrutural estão em nossas raízes históricas; a exploração irracional dos recursos naturais, a submissão da mulher como reprodutora e mercadoria sexual e as decisões de Estado serem tomadas por meia dúzia de homens brancos estão em nossa identidade nacional; e lavar a honra com sangue, matar indígenas para roubar suas terras e atirar na população pobre e negra como política de segurança pública estão em nossas tradições culturais.
E isso para falar apenas de Brasil. Até porque queimar pessoas na fogueira por intolerância de pensamento está nas raízes históricas de muita gente.
Iniciativas dos três poderes e do Ministério Público vinham tentado garantir a saudável separação entre igreja e Estado, autorizando que crucifixos que adornavam repartições fossem retirados. Algumas dessas ações tiveram vida curta, mas o que importava é que havia um processo de conscientização e ação em andamento. Lento, mas havia.
Com a decisão do STF, alinhada com o avanço do conservadorismo religioso na sociedade, temos um retrocesso.
Como garantir que Justiça seja isenta ao abraçar símbolos religiosos?
É necessário que se retirem adornos e referência religiosas de edifícios públicos, como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Não é porque o país tem uma maioria de cristãos que espíritas, judeus, muçulmanos, adeptos e religiões de matriz africana, ateus, enfim, minorias, precisem aceitar Jesus Cristo ou santos em um espaço do Estado.
Mesmo entre os cristãos, há diferenças, com evangélicos se constrangendo com estátuas da Nossa Senhora Imaculada Conceição, padroeira da Justiça, em tribunais onde suas demandas serão julgadas.
As denominações cristãs são parte interessada em várias polêmicas judiciais - de pesquisas com célula-tronco à extensão do direito ao aborto. Se esses elementos estão escancaradamente presentes nos locais onde são tomadas as decisões sem que ninguém se mexa para retirá-las, como garantir que as decisões em si serão isentas?
O Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos, tenham seus templos, igrejas e terreiros e ostentem seus símbolos publicamente. Mas não pode se envolver, positiva ou negativamente, em nenhuma delas.
"Ah, mas então vamos retirar o Cristo Redentor do morro do Corcovado. E vamos acabar com os feriados religiosos no Brasil". Chantagem besta, do mesmo DNA de: "se for para começar a discutir as regras do jogo, levo a minha bola embora".
Primeiro: é difícil imaginar que uma instituição milenar, que possui a propaganda de ideias como um de seus alicerces, vá além das bravatas sobre o maior "anúncio" a céu aberto do país, construído em uma montanha no Rio. Segundo: ninguém está pedindo para demolir monumentos ou igrejas, nem mudar nomes de ruas ou avenidas, mas manter a presença da religião fora das instituições que tomam decisões as nossas vidas. Terceiro: eu topo trocar a Sexta-Feira Santa por tornar o Dia Internacional das Mulheres feriado, por exemplo. E tenho uma sugestão enorme de feriados laicos.
Não sou eu quem pede isso e sim Mateus. É, Mateus. O coletor de impostos que registrou a fala do revolucionário de barba, que pregava a igualdade entre os povos. Não, Marx não. Jesus de Nazaré. No capítulo 22, versículo 21 do livro atribuído ao evangelista, está registrado: "Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus". Estado é Estado. Religião é religião. Simples assim.
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Quero receberSe a Justiça não quiser subtrair, que some
Em 2012, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo pediu que a Justiça Federal determinasse que as novas notas de reais a serem impressas viessem sem a expressão "Deus seja louvado". Não foi atendida, infelizmente.
O Banco Central (responsável pelo conteúdo das notas) informou que o fundamento legal para a inserção da expressão "Deus seja louvado" nas cédulas era o preâmbulo da Constituição, que afirma que ela foi promulgada "sob a proteção de Deus". O procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, afirmou, na época, que "quando o Estado ostenta um símbolo religioso ou adota uma expressão verbal em sua moeda, declara sua predileção pela religião que o símbolo ou a frase representam, o que resulta na discriminação das demais religiões professadas no Brasil".
Se a Justiça não quiser subtrair, que então some. Coloque uma placa com uma Estrela de Davi, uma Crescente com uma Estrela, um OM em sânscrito, uma Roda do Dharma, um Yin-Yang, um Khanda, guias ou um Trono de Xangô e algumas reflexões ateístas. Mas tendo em vista todas as manifestações religiosas e crenças do brasileiro, vai faltar espaço naquele nicho onde hoje dorme o crucifixo no plenário do STF para caber tudo. Então, se não podemos todos, não coloque ninguém.
Você pode estar pensando que esse debate é inútil frente a tantas necessidades do país. Mas está enganado. Ele é simbólico, portanto estruturante do que entendemos como Brasil.
O respeito aos outros não deveria partir do medo de ser punido, mas da consciência de que a sociedade deve levar em conta a vontade da maioria desde que respeitada a dignidade das minorias. E isso não deveria ser negociável.