Brasil boicota Carrefour por gado, mas não quando a empresa tortura negros
A política nacional está se desdobrando, nesta segunda (25), para defender o boicote de frigoríficos ao Carrefour no Brasil após o presidente mundial da rede anunciar um boicote de carne bovina do Mercosul na França. Ele queria fazer média com produtores franceses contrários ao acordo entre União Europeia e nosso bloco comercial.
Quando a agropecuária tá em pauta, Brasília pede respostas duras e concretas, como fizeram o ministro da Agricultura Carlos Fávaro, o presidente da Câmara, Arthur Lira, entre outros. Mas quando a empresa comete uma sequência de abusos contra a população negra, não vemos o mesmo movimento por boicote puxado pela política.
Sim, a carne vermelha realmente vale mais do que a negra no Brasil.
O caso mais famoso foi o de Beto Freitas, assassinado em uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre, na véspera do Dia da Consciência Negra, em 19 de novembro de 2020. Imobilizado, acabou sufocado e espancado até a morte no estacionamento por um segurança e um policial militar temporário. Um acordo milionário foi firmado em setembro de 2021 e a empresa prometeu mudar o comportamento em suas lojas.
Mas no dia 7 de abril de 2023, a professora negra Isabel Oliveira foi perseguida por um segurança enquanto fazia compras no Atacadão Parolin, em Curitiba, que pertence à rede francesa. Depois, retornou ao estabelecimento e tirou a roupa em forma de protesto, mostrando a frase que escreveu no próprio corpo: "Sou uma ameaça?".
No mesmo dia, Vinícius de Paula, marido de Fabiana Claudino, bicampeã olímpica de vôlei, diz ter sofrido racismo em uma unidade do Carrefour em Alphaville, condomínio de alta renda próximo a São Paulo. Ele teve atendimento negado em um caixa preferencial vazio, que depois aceitou uma cliente branca que também não se enquadrava nos requisitos.
Após o caso de Isabel, o presidente Lula, afirmou, em reunião ministerial, que "o Carrefour cometeu mais um crime de racismo com uma cliente negra" e que "a gente não vai admitir o racismo que essa gente tenta impor ao Brasil".
Mesmo após a promessa, um casal foi torturado e humilhado por tentar furtar leite em pó no Big Bom Preço, pertencente ao grupo Carrefour, do bairro São Cristóvão, em Salvador, no mês seguinte. O caso gerou comoção após um vídeo com as agressões e a justificativa de ambos, de que o produto era para alimentar a filha que passava fome, viralizar nas redes sociais.
A capivara é extensa e não nasceu hoje, claro. Por exemplo, há 15 anos, em agosto de 2009, Januário Alves de Santana, acusado de estar roubando um automóvel em uma loja do Carrefour, em Osasco (SP), foi submetido a uma sessão de tortura. "O que você fazia dentro do EcoSport, ladrão?", perguntaram, enquanto cinco pessoas davam chutes, murros, coronhadas, na sua cabeça, na sua boca. O carro era dele, comprado em 72 vezes.
Não adianta soltar repetidas notas dizendo que a empresa não compactua esse tipo de crime se ações justiceiras e milicianas, que atropelam a Constituição Federal, continuam ocorrendo em suas lojas através de funcionários sob sua responsabilidade. Pois vai ficando a impressão de que, quem visitar o mercado, a depender da classe social e cor de pele, vai encontrar carne, frutas, pilhas, amaciante, mas também tortura.
Picanha vale mais que gente em muitos mercados
Claro que picanha vale mais que gente também em outras empresas varejistas brasileiras. Por exemplo, Bruno Barros e Yan Barros, tio e sobrinho, que furtaram quatro pacotes de carne de uma unidade de outra marca da empresa, o supermercado Atakarejo, em Salvador, foram encontrados mortos com sinais de tortura e marcas de tiro em abril de 2021. Os seguranças do mercado entregaram ambos a traficantes para que fossem punidos e mortos.
Em outubro de 2022, dois homens foram torturados e extorquidos por cinco seguranças do UniSuper, em Canoas (RS), diante do gerente e do subgerente da loja, após tentarem furtar duas peças do corte. Vítima das piores agressões, um homem negro foi colocado em coma induzido no hospital com fraturas no rosto e na cabeça. Após o espancamento, o gerente ainda tirou uma foto para comemorar.
O Carrefour é o maior grupo supermercadista do país, então o senso comum aponta que a incidência de problemas tende a ser maior. Mas a lógica de responsabilidade empresarial não funciona dessa forma. Pois, muito mais dinheiro à disposição pode significar mais dividendos pagos aos acionistas ou mais recursos para uma empresa implementar protocolos de salvaguardas a fim de garantir que a vida seja respeitada em suas dependências.
A menos que, entre os motivos dos lucros, estejam a contratação de empresas desqualificadas para cuidar da segurança, a falta de investimento em treinamento de funcionários e uma política interna que proteja o patrimônio acima da dignidade humana. O que mostraria um alinhamento do grupo francês à nossa herança escravista, que ainda permite que pessoas em posição de poder sintam-se gestoras do pelourinho.
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Quero receberO caso dos boicotes do Carrefour e ao Carrefour por conta da carne vermelha é um jogo em que todos saem ganhando. Os envolvidos sabem que a) é pífia a quantidade de carne bovina fresca importada pela França daqui, b) precisamos melhorar muito nossos insustentáveis padrões ambientais e c) a Europa precisa parar de usá-los para mascarar um protecionismo de quem não tem recursos naturais para ostentar a mesma produtividade.
Mas tanto lá quanto aqui, monta-se o escarcéu aqui para satisfazer interesses: a rede atende às demandas do parceiros na França (mesmo que, logo mais, mude de posição) e, no Brasil, empresas reforçam suas marcas para a disputa comercial e junto a investidores e membros do Executivo e do Legislativo ganham capital político, moral junto ao setor e ganham força para negociações entre blocos comerciais. Daqui a pouco, tudo volta ao normal.
Tal como virou normal negro pobre ser torturado em supermercado.