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O que a muamba de joia de Michelle e os escravizados do vinho têm em comum?
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O que a tentativa de apropriação de patrimônio público pela família Bolsonaro através do contrabando de joias no valor de R$ 16,5 milhões e o resgate de 207 escravizados na produção do vinho em Bento Gonçalves (RS) têm em comum? Ambos são escândalos nacionais cuja descoberta só foi possível graças à estabilidade funcional de servidores públicos.
A estabilidade, tão criticada por aqueles que acreditam que a massa dos servidores públicos é feita de "parasitas" (termo usado, aliás, pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, para designar a categoria em 2020), reduz o medo de retaliações dos poderes político e econômico diante do cumprimento da lei.
Se não houvesse estabilidade funcional, qual seria o destino do servidor da Receita Federal Marco Antonio Santanna ao receber, em 29 de dezembro do ano passado, a visita do primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira, incumbido por Jair Bolsonaro de tentar, pela última vez, retirar as joias que ficaram retidas em outubro do ano anterior, e se negar a entregá-las?
O sargento tentou colocar o servidor no telefone com um "coronel", coisa que ele não aceitou. Depois, recebeu ligação de Júlio César Gomes, que chefiava a Receita, mas manteve o cumprimento da lei. Sem a garantia de que pudesse cumprir seu dever, Santanna poderia ter sido demitido e as joias não estariam hoje no cofre da Receita no Aeroporto de Guarulhos, mas no cofre de Michelle e Jair, no condomínio Vivendas da Barra.
A mesma lógica guia o combate à escravidão contemporânea desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, em 1995, formados por auditores fiscais do trabalho, procuradores do Trabalho, agentes da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, defensores públicos da Defensoria Pública da União, entre outros órgãos.
Sem a estabilidade funcional, os servidores não teriam como bater de frente com interesses econômicos e políticos em um país em que o "você sabe com quem está falando?" não é um sintoma de alguém acometido de demência por doença, mas de pessoas que desenvolveram demência social.
O caso das vinícolas colocou Aurora, Garibaldi e Salton no foco. Mas outras empresas já foram envolvidas direta ou indiretamente com trabalho escravo, como Zara, Animale, M.Officer, MRV, OAS, Odebrecht, Cutrale, Citrosuco, Cosan, Nespresso, Starbucks, JBS, Marfrig, Minerva, entre tantas outras. Em alguns casos, as empresas aceitam a responsabilização. Em outros, não.
De acordo com fiscais e procuradores com os quais a coluna conversou, foram muitas as tentativas nos últimos 28 anos de pressionar funcionários públicos para que não registrassem o caso como trabalho escravo.
Alguns ficaram amplamente conhecidos. No maior resgate de escravizados da história recente do país, 1.064 pessoas foram retiradas da fazenda Pagrisa, em Ulianópolis (PA), em junho de 2007. Na sequência, senadores ruralistas fizeram uma visita a essa usina de cana para dar apoio à empresa e atacar a fiscalização.
Na época, a Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho suspendeu outras ações de resgate programadas sob a justificativa de que a ação política havia instalado um clima de insegurança. Houve indignação pública quanto à tentativa de interferência no resgate de gente escravizada e, com isso, garantido aos grupos de fiscalização que suas ações continuavam protegidas por lei.
Vale lembrar que os auditores fiscais do trabalho que atuam na zona rural têm sido vítimas de violência por parte de descontentes com as autuações. O caso mais famoso foi a Chacina de Unaí, que executou quatro servidores, em 28 de janeiro de 2004, a mando de Antério e Norberto Mânica, grandes produtores de feijão.
O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional) disse em nota, neste domingo (5), que o auditor que apreendeu as joias teve atuação "exemplar".
"Esse episódio revela, por um lado, que garantias constitucionais do funcionalismo público, por exemplo a estabilidade, bem como as prerrogativas específicas dos auditores fiscais, tornam possível o combate a ilícitos e constituem garantia à sociedade de que a lei será aplicada a todos, independentemente de cargos, funções ou poder", afirmou. Fato.
A sociedade celebra a "coragem" ou a "perseverança" de servidores públicos envolvidos no combate a situações escandalosas, como um presidente tentar trazer uma R$ 16,5 milhões em joias usando militares como mulas para fugir do risco dos presentes dados pela ditadura da Arábia Saudita ficarem com o Estado e não com ele, ou como o resgate de 207 pessoas da escravidão que atuavam na carga e descarga de uvas e que eram tratados com violência que incluía o uso de armas de choques, spray de pimenta e cassetetes.
Mas, não raro, deixa-se de lado que isso é possível graças à legislação que garante estabilidade funcional.
Na época em que a Reforma Administrativa foi apresentada pelo governo Jair Bolsonaro, a defesa do fim da estabilidade foi colocada na mesa. Se ele tivesse sido reeleito, a independência de quem garante o cumprimento da lei seria uma das primeiras coisas a irem à forca.