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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Atraso no Censo foi uma das piores 'heranças malditas' de Bolsonaro a Lula

Colunista do UOL

28/06/2023 17h43

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O Censo 2022 divulgou, nesta quarta (28), que somos 203.062.512 almas. Se por um lado o momento é de alívio porque temos informações frescas que serão úteis para orientar decisões de governos, empresas e da sociedade, por outro é de lamento. Afinal, se o Brasil não tivesse sido governado por Bolsonaro, o Censo muito provavelmente teria vindo um ano antes, evitando um apagão estatístico.

A coleta de dados que estava prevista para ir a campo em 2020 foi adiada para o ano seguinte devido às restrições sanitárias trazidas pela pandemia de covid-19. Até aí, é o imponderável. Melhor suspender do que transformar recenseadores em superespalhadores de vírus.

O problema é que, em 2021, o levantamento foi novamente adiado devido a um corte de verbas de 96% no orçamento. A previsão era gastar R$ 2 bilhões naquele ano (o que já seria uma sombra da estimativa de R$ 3,4 bilhões de 2019), mas o valor foi reduzido para míseros R$ 72 milhões.

A retirada da verba foi feita pelo Congresso Nacional, mas a decisão de desidratar o orçamento do IBGE coube ao governo Bolsonaro. "O Censo ficou inviabilizado, é uma decisão de governo. Só aprovou o que o governo queria", afirmou o deputado Felipe Carreras (PSB-CE), relator setorial do Ministério da Economia no Orçamento na época.

O problema é que os dados do Censo orientam desde o tamanho dos repasses do Fundo de Participação dos Municípios, que abastecem prefeituras pobres, até a metodologia das pesquisas eleitorais. Sim, a estatística se baseia na proporção de determinados grupos no universo da população. Na falta de uma contagem universal, muitos institutos estavam usando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua, que se mostrou numericamente bem diferente do Censo.

O Supremo Tribunal Federal determinou, em maio de 2021, que o governo Bolsonaro garantisse recursos para que o levantamento fosse realizado em 2022. Se não houvesse pressão, talvez o governo Lula é que tivesse que ir a campo coletar dados, o que faria com que tivéssemos um Censo 2023 - 13 anos após o último levantamento de 2010.

O Brasil sempre produziu números de qualidade, nossos institutos têm renome internacional e os trabalhadores desses órgãos são de grande competência. Mas os últimos quatro anos foram sinistros para quem trabalha com levantamento de dados, uma vez que o governo passado, insatisfeito com a realidade, comprou brigas com ela. Culpou termômetros pelas febres que encarava.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, menosprezou o questionário do Censo. "Vamos tentar, pelo amor de Deus, simplificar", afirmou no dia 22 de fevereiro de 2019, sugerindo a redução do questionário. "Se perguntar demais você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber. Sejamos espartanos, façamos as coisas mais compactas e vamos tentar de toda forma ajudar", disse.

O então presidente Jair Bolsonaro afirmou que a metodologia de cálculo de desemprego do IBGE estava errada porque não concordava com ela.

O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional na época, disse que as taxas de desmatamento eram manipuladas e infladas.

Osmar Terra, então ministro da Cidadania, reclamou que não confiava em pesquisa da Fiocruz, de renome internacional que foi fundamental para a produção de vacinas contra a covid-19. Aliás, a atual ministra da Saúde, Nísia Trindade, é ex-presidente da instituição.

O ex-chanceler Ernesto Araújo não acreditava em mudanças climáticas e afirmou que o aumento da média da temperatura global estava ocorrendio porque estações de medição de temperatura que estavam no "mato" hoje estariam no "asfalto".

Aliás, após dizer que tinha a "convicção" de que dados de desmatamento da Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) eram "mentirosos" e ouvir uma resposta dura de Ricardo Galvão, então chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Bolsonaro revelou que o seu objetivo com as críticas era maquiagem mesmo.

Disse que estava preocupado com dados que podiam "prejudicar o país", ser "propaganda negativa" ao Brasil no exterior. E que se Galvão tivesse identificado dados alarmantes, deveria ter procurado seus superiores para avisar por questão de "responsabilidade" e "patriotismo". O cientista, hoje, está à frente do CNPq.

Os ataques sistemáticos do governo Bolsonaro aos números e às instituições que os calculam afetou a coleta de dados do próprio Censo. A taxa dos que não responderam ao questionário chegou a 1,57%, em 2010, e de 4,23%, em 2022.

O presidente interino do IBGE, Cimar Azeredo, saiu em defesa dos números, dizendo que eles são consistentes. Mas reconheceu que a coleta saiu prejudicada, pois o levantamento começou em meio a uma "eleição extremamente polarizada". E que as críticas de Bolsonaro ao instituto "de alguma forma têm um impacto".

O governo passado foi um motorista que conduziu o país por uma estrada esburacada e, ao invés de usar toda informação possível para uma travessia tranquila, gritava que as placas sinalizando "pista escorregadia" eram fake news.

Após um esperado acidente, lamentava o ocorrido dizendo que nunca desconfiou das placas ou as culpava por uma suposta falta de clareza - e criticava quem dizia que ele não sabia dirigir. Isso seria engraçado se nós não fossemos nós os passageiros desse ônibus, que não contava com cinto de segurança.

Políticos pouco afeitos à democracia, quando colocados contra a parede, tendem a reduzir a transparência de informações às quais a sociedade tem acesso a fim de adaptar a realidade à sua narrativa.

Não foi à toa que veículos de comunicação se juntaram em um consórcio, em junho de 2020, para apurar e divulgar os dados sobre casos e óbitos por covid-19 diariamente. Isso surgiu a partir do momento em que o Ministério da Saúde começou a fazer malandragem com a sua divulgação uma vez que os números de mortos começavam a incomodar. Nem os mortos Jair quis contar. Afinal, como ele mesmo disse, "eu não sou coveiro".

Uma coisa, contudo, não podemos negar. Foi um governo que honrou suas origens. Diante de cenários negativos, torturou números até que eles gritassem o que ele deseja ouvir.

Tradutor: Atraso no Censo foi uma das piores heranças malditas de Bolsonaro a Lula

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL