Crivella requenta "kit gay" e mostra o papel de políticos na desinformação
Helena Martins*
Muita gente pensa que a desinformação ocorre apenas no "submundo" da internet. Mas não é bem assim. No primeiro debate entre candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro, promovido pela Band na quinta-feira, 1, ficou explícito o recurso a esse tipo de estratagema, mesmo diante das câmeras e do possível escrutínio público.
Prefeito e candidato à reeleição, Marcelo Crivella (Republicanos) requentou informação falsa sobre "kit gay" ao afirmar que: "Se o PSOL ganhar a eleição, nossas crianças vão ter uma coisa que tinha em casa, orientação sexual. Vai ter kit gay na escola e e vão induzir a liberação das drogas".
Certamente seguindo o script combinado previamente, a fala surgiu em confronto com a candidata do PSOL, Renata Souza. Antes da discussão entre os dois, Clarissa Garotinho (PROS) havia questionado Crivella sobre a gestão das contas da prefeitura.
Crivella, na sequência, teve a oportunidade de começar e perguntou a Renata sobre sua opinião acerca da "ideologia de gênero" e prevenção às drogas. Renata optou por enfatizar, na resposta, críticas à condução do prefeito no controle da pandemia. Na tréplica, ele tirou do bolso a velha "fake news", em uma tentativa de colocar o debate no campo em que sua torcida gosta de vê-lo jogando.
Eleitores de Bolsonaro acreditaram na existência do "kit gay"
Direto do armário de 2018, o "kit gay" voltou à tona, mostrando que as táticas não foram renovadas. O "kit" foi o segundo boato que mais ganhou lastro no Facebook e no Twitter naquele pleito, segundo levantamento da Aos Fatos, que registrou mais de 400 mil compartilhamentos com esse teor.
Confirmando o impacto, pesquisa IDEIA Big Data/Avaaz mostrou que 84% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram na existência do "kit gay". Sua criação foi atribuída a Fernando Haddad (PT) por Bolsonaro, inclusive durante entrevista como candidato no Jornal Nacional. Na importante bancada, com um exemplar à mão, o hoje presidente afirmou que o livro Aparelho Sexual e Cia tinha sido distribuído em escolas públicas pelo Ministério da Educação sob o comando de Haddad.
O suposto "kit gay", além de bastante conhecido e desmentido, chegou a ser objeto de liminar do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que requereu a remoção de 36 conteúdos relacionados a ele por Bolsonaro e seus apoiadores. O relator do caso, ministro Carlos Horbach, destaca em sua decisão que "a difusão da informação equivocada de que o livro em questão teria sido distribuído pelo MEC, no referido projeto, no PNLD ou no PNBE, gera desinformação no período eleitoral, com prejuízo ao debate político, o que recomenda a remoção dos conteúdos com tal teor".
Uma semana depois dessa medida, Bolsonaro voltou a veicular conteúdos sobre o mesmo tema, em inserções na rádio e na TV, ignorando o entendimento da Justiça.
Quais medidas cabem às falas de Crivella?
Na atual eleição, consta na legislação que é considerado crime previsto no Código Eleitoral (Lei 4.737, de 1965) divulgar denúncias caluniosas contra candidatos em eleições, conforme alteração legislativa aprovada pelo Congresso em 2019. A candidata Renata Souza já informou que vai acionar a justiça para que o candidato seja responsabilizado.
Mas o debate sobre o tema não é apenas da esfera jurídica. É do próprio fazer político que se trata. Do uso de desinformação de forma escancarada, banalizada, sem que a sociedade reaja criticamente à altura. Um uso que se faz de forma intencional e estratégica, como apontamos em artigo anterior neste Observatório das Eleições. Que ocorre sem que tenhamos sequer nitidez sobre a extensão do impacto de conteúdos desinformativos ou possibilidade de alcançar os mesmos receptores para que conheçam outras versões dos fatos.
Políticos e disseminação de fake news
O caso, infelizmente, não é isolado. Lançado nesta semana, estudo da Universidade de Cornell indica forte papel de Donald Trump na disseminação de notícias falsas sobre o coronavírus. Pesquisadores mapearam 38 milhões de reportagens publicadas entre 1º de janeiro e 26 de maio e constaram que, em mais de 522 mil artigos, houve desinformação. Em quase 38% destes casos, a discussão partiu de Trump, por isso considerado no estudo o maior impulsionador da "infodemia".
Nos conteúdos, foram promovidas "curas milagrosas" não comprovadas para a Covid-19 ou esta foi apresentada como "farsa do Partido Democrata" com o objetivo de atacar o atual presidente, que testou positivo para o coronavírus.
O interessante do estudo é que ele comprova que a desinformação não está apenas associada às mídias digitais, tendo espaço na mídia tradicional e também na online, o que o caso Crivella também deixa ver. Além disso, destaca o papel central de agentes políticos em sua promoção.
Bastante recorrente, esse tipo de vinculação é percebida pela população. De acordo com o Digital News Report 2020, estudo feito a partir da parceria entre Reuters Institute e Universidade de Oxford, os políticos domésticos são vistos como os principais responsáveis por informações falsas e enganosas online (40%). Depois estão ativistas (14%), jornalistas (13%), pessoas comuns (13%), e governos estrangeiros (10%). Estados Unidos, Brasil, Filipinas e África do Sul são os países com mais registros de culpabilização de políticos.
O levantamento, que ouviu mais de 80 mil pessoas em 40 países, a partir questionário online aplicado entre o fim janeiro e o início de fevereiro, também mostra que mais da metade (56%) dos entrevistados, repetindo o que havia sido diagnosticado em 2019, permanece preocupado com o que é real e falso na internet quando recebe uma notícia. A preocupação tende a ser maior em países do Sul global. O Brasil lidera a lista (84%), seguido de Quênia (76%), e África do Sul (72%).
Essa situação deve lançar luz sobre o problema e direcionar nossas buscas por respostas para os agentes que promovem desinformação intencionalmente e que se valem de sua projeção como figuras públicas e mesmo autoridades para influenciar a população e subverter o debate democrático.
* Helena Martins é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), é jornalista e doutora em Comunicação Social pela UnB, com período sanduíche no Instituto Superior de Economia e Gestão (Iseg) da Universidade de Lisboa. Editora da Revista Eptic, é pesquisadora do GT Economía política de la información, la comunicación y la cultura da Clacso e integrante do Intervozes.
Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.