Primeira semana de campanha é marcada por fake news requentadas sobre urnas
Helena Martins*
Campeãs em número de circulação nas eleições de 2018, campanhas de desinformação sobre urnas eletrônicas são novamente vistas aos montes na internet. Observando os chats de WhatsApp e os portais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e das principais agências de checagem de fatos em operação no Brasil, fica claro que, ao longo da primeira semana de campanha, conteúdos já bastante conhecidos e rotulados como falsos mas que atingem a credibilidade do sistema eleitoral têm sido novamente utilizados.
O Tira-Dúvidas Eleitoral do TSE, assistente virtual da Justiça Eleitoral acessível por meio do WhatsApp, apresentou neste domingo (4) os seguintes destaques sobre a primeira semana de campanha: "É falso que a Lenovo comprou a Positivo, fabricante de urnas das eleições de 2022"; "Escolhida para produzir urnas eletrônicas, Positivo não foi comprada pela chinesa Lenovo" e "Lenovo nunca comprou a Positivo, ao contrário do que diz boato".
Urnas eletrônicas no centro das fake news
Na página "Fato ou Boato", iniciativa do TSE em parceria com diversos agentes para combater a desinformação, as urnas eletrônicas também tiveram destaque. Anulação de mais de 7 milhões de votos nas eleições, impossibilidade de auditoria das urnas e suposta entrega de códigos delas para Venezuela foram alguns dos conteúdos desmentidos.
Tendo em vista a opacidade das plataformas digitais, que podem direcionar conteúdos exclusivamente para determinados usuários, e também a diversidade de sites, canais, contas e grupos, não é possível cravar o número de compartilhamentos ou saber se outros conteúdos falsos não viralizaram ainda mais.
Mas a análise de diferentes sites de verificação possibilita uma amostra importante do que vem ocorrendo, já que cada um desenvolve sua própria metodologia de coleta e análise de posts, chegando a distintas fontes. Destaco o que foi produzido sobre o que circulou sobre eleições nas redes, sem considerar, por isso, análises dos verificadores sobre falas de políticos em debates, situação já abordada neste Observatório das Eleições.
Na Agência Lupa, considerada a primeira agência de fact-checking do Brasil, as eleições aparecem em mensagens sobre urnas eletrônicas. "Circula nas redes sociais um post que diz que somente Brasil, Cuba e Venezuela usam urnas eletrônicas em eleições", informa.
Segundo checagem da agência, de acordo com o Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (International IDEA), 26 países, como Índia e Peru, usam urnas com tecnologia eletrônica para eleições gerais, de um total de 178. Outros 16 utilizam esses equipamentos em pleitos regionais.
O Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 28 diferentes veículos de comunicação brasileiros, deu o mesmo destaque: "Postagem no Facebook afirma que, além do Brasil, apenas Cuba e Venezuela usam urnas eletrônicas". Fato ou Fake, do Grupo Globo, também verificou mensagens sobre urnas eletrônicas. Uma delas fazia referência a possível veto do Paraguai à utilização desses equipamentos brasileiros. Nesses casos, teorias da conspiração envolvendo outros países saltam aos olhos.
Na Aos Fatos, projeto mais abrangente de verificação, mais uma vez há referências e explicações sobre as urnas. A agência informa que, na primeira semana das eleições, foram encontradas 17.891 publicações consideradas de "baixa qualidade" sobre o pleito, de um total de 658.707 mensagens coletadas no período. Os termos que mais apareceram na coleta foram: Bolsonaro (851 menções), presidente (610) e candidato (606). Candidatos (510), Trump (426), pandemia (381) e prefeito (400) foram outros recorrentes.
A campanha ainda está fria e o fato de termos o noticiário bastante pautado pelos debates nacional, com destaque para a indicação de Kassio Nunes por Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal (STF), e internacional, com as eleições norte-americanas, explicam isso.
Partido Novo, João Dória, Manuela D'Ávila e até Jesus foram tema de desinformação
Além de conteúdos sobre a urna, outros temas aparecem. No dia 2, o destaque foi uma mensagem referente ao partido Novo, alegando que um representante dele teria participado da criação de conselho político com partidos de esquerda contra Bolsonaro durante um encontro do movimento Direitos Já - Fórum da Democracia, o que não é confirmado pelo partido. Publicações do tipo acumulavam cerca de 6 mil compartilhamentos até aquela sexta, segundo a agência.
Outra checagem mostrou que são falsas as mensagens que apontam que o governador de São Paulo, João Doria, seria rejeitado por 98% da população.
Uma montagem de foto de Manuela D'Ávila (PCdoB), candidata à Prefeitura de Porto Alegre, vestindo camiseta com dizeres "Jesus é travesti" também voltou a circular. Até o dia 28, publicações recentes já acumulavam mais de 18 mil compartilhamentos com a mesma montagem, que foi recorrente em 2018, época em que também circulou informação de que a blusa continha, na verdade, a frase "rebele-se".
Além desta, "Aos Fatos identificou, por exemplo, que a publicação que alegava que D'Ávila teria afirmado ser "mais popular que Jesus" foi compartilhada ao menos 10 mil vezes nas últimas 48 horas", informa publicação do dia 29.
O fato de conteúdos notoriamente requentados serem novamente utilizados é um indício de que continuam servindo aos interesses de grupos que promovem campanhas de desinformação e de que estes seguem apostando na tática de fragilizar a confiança no sistema eleitoral e na própria democracia. Por outro lado, a situação demonstra os limites das checagens, seja porque não conseguem levar a verificação a quem teve contato com o conteúdo falso ou porque os receptores, mesmo sabendo ou desconfiando da veracidade de algo, participam deliberadamente das ações de compartilhamento.
A adesão da população à essas notícias pode ter várias explicações, entre elas a reafirmação de posicionamentos previamente existentes. Além disso, escreve Giuliano da Empoli em Engenheiros do Caos (Vestígio, 2019), para população que adere a líderes políticos de viés populista, "a verdade dos fatos, tomados um a um, não conta. O que é verdadeiro é a mensagem no seu conjunto, que corresponde a seus sentimentos e suas sensações".
No YouTube predominam ataques à esquerda
A Aos Fatos produz um radar que também mapeia conteúdos categorizados como de baixa qualidade no YouTube. No mapeamento desta plataforma, aparecem com destaque ataques à esquerda. Na primeira semana das eleições, a agência apontou dois conteúdos como com "alta probabilidade" de ser desinformativo.
Um deles ganhou o título "Freixo capitalista e Felipe Santa Cruz jogando o jogo". O vídeo faz referência a uma situação verídica: a controvérsia em torno da doação de Armínio Fraga e de outros empresários a candidato do PSOL. Freixo disse que, se a candidatura fosse impugnada, poderia deixar o partido. O youtuber, por sua vez, sentencia que o deputado "ameaçou sair do PSOL caso o partido não aceitasse doações polpudas de bilionários banqueiros brasileiros". Depois, segue fazendo associações aos negócios da família de João Moreira Salles na extração de nióbio, cineasta que também fez doação para aquela candidatura, e apresenta posicionamento de Bolsonaro a favor da ampliação da exploração do minério, como se isso fosse prejudicar os Salles. A tese sustentada é que isso juntaria PSOL e Moreira Salles por dinheiro contra o presidente.
Na segunda parte do vídeo, o assunto é a fala do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que classificou como qualificado o indicado de Bolsonaro ao Supremo. O posicionamento é apresentado como uma pecepção de "oportunidade" para piorar o que o youtuber aponta ser "um racha enorme na base conservadora por causa dessa escolha", pois parte dela esperava alguém "claramente conservador e de direita, e esse é o motivo da nossa decepção". Nesses casos, o que há é a abordagem distorcida de informações baseadas na realidade, mas manipuladas, com recursos ao exagero e à descontextualização.
O outro vídeo associado às eleições classificado como com "alta probabilidade" de ser desinformativo chama-se "Quem são os partidos da esquerda - cuidado". Um apresentador expõe áudio atribuído ao pastor Silas Malafaia em que alerta "aos cristãos" sobre portaria do governo Bolsonaro sobre aborto e diz que ela impediria apenas a realização de interrupções não previstas em lei, o que não é verdade.
O youtuber menciona ação de partidos de esquerda no Supremo contra a portaria e pergunta: "é nesses partidos que você vai votar?". Aborto, ideologia de gênero, família, Deus. A cantilena já conhecida é apresentada. E conclui: "se você é a favor da família, se você tem Deus no coração e na sua família, é obrigação orientar as pessoas em quem tem que votar e em quem não tem que votar". Mais uma vez, há combinação de mentira, descontextualização e exagero, a partir de referência ao real, o que mostra a complexidade da desinformação e a multiplicidade de estratégias utilizadas para convencer e influenciar o público.
Estudos têm apontado que o YouTube favorece canais de extrema-direita por meio de seus algoritmos, recomendando-os porque conteúdos extremados, exagerados ou apelativos geram engajamento e mantêm a audiência conectada e produzindo dados. No período das eleições de 2018, reportagem do The Intercept Brasil revelou que dos dez canais que mais cresceram na plataforma metade era dedicada a promover Bolsonaro e outros extremistas de direita. Se está claro que velhas fake news estão sendo reutilizadas, importaria saber se a programação dos algoritmos também. Dada a opacidade das plataformas, essa informação dificilmente vira à tona ao longo do pleito.
É como se estivéssemos todos sob o impacto do complexo de Cassandra: avisos sobre os riscos da desinformação foram feitos, mas tomados como falsos e desacreditados. Enquanto isso, aquilo que é possivelmente ou mesmo sabidamente falso ganha as telas com ares de verdade. Resta saber se 2020 requentará 2018 também nas urnas.
*Helena Martins é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), é jornalista e doutora em Comunicação Social pela UnB, com período sanduíche no Instituto Superior de Economia e Gestão (Iseg) da Universidade de Lisboa. Editora da Revista Eptic, é pesquisadora do GT Economía política de la información, la comunicación y la cultura da Clacso e integrante do Intervozes.
Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br
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