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Reinaldo Azevedo

Vírus no STJ: faço picadinho da decisão de ministro, um "amor" de Bolsonaro

João Otávio de Noronha, presidente do STJ. Sua decisão não está apenas errada. Ele nem sequer poderia ter decidido porque antecipou voto em entrevista - Foto: Sergio Amaral/STJ/Flickr
João Otávio de Noronha, presidente do STJ. Sua decisão não está apenas errada. Ele nem sequer poderia ter decidido porque antecipou voto em entrevista Imagem: Foto: Sergio Amaral/STJ/Flickr

Colunista do UOL

09/05/2020 09h52

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Não foi sem constrangimento e alguma melancolia -- que tempos estes! -- que li a decisão (íntegra aqui) do ministro João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça, que suspendeu a liminar conferida pelo Tribunal Regional da 3º Região (TRF-3), que havia determinado que o presidente Jair Bolsonaro tornasse públicos os resultados de exame para detecção do novo coronavírus. Os dados foram pedidos pelo Estadão com base na Lei de Acesso à Informação. De saída, observo duas coisas:
1 - a decisão de Noronha afronta a lei e a Constituição;
2 - o doutor deveria ter se dado por impedido porque já havia, de maneira escancarada e inconteste, antecipado a sua decisão. E o fez antes mesmo de Advocacia Geral da União recorrer. Um vexame!

A impressão que se tem, às vezes, é a de que o ordenamento legal desapareceu, tomou chá de sumiço, foi visitar outras paragens e nos deixou entregues às nossas vastas solidões morais.

Antes que entre no mérito legal propriamente, há uma questão que é, sim, de bom senso. E nem se faz necessário mergulhar nos códigos para se chegar a uma resposta razoável. Se Bolsonaro tem pé de atleta, gastrite, espinhela caída, fungo nas unhas, hemorroidas, gengivite, colesterol, diabetes, glossodinia, trimetilaminúria ou disgeusia, o problema obviamente é só dele. Se, no entanto, teve ou tem uma doença infectocontagiosa, aí o problema também é nosso. Especialmente nestes dias.

Faço essa observação porque boa parte do exercício que fazemos do direito se baseia numa mistura de bom senso e senso comum, confunde-se com a boa educação, com noções que aprendemos de certo e errado, de justo e injusto, que derivam da educação, da convivência, do espírito gregário. Ninguém sai por aí com a Constituição e códigos infraconstitucionais debaixo do braço. Mais ainda: há um monte de coisas que, embora não sejam proibidas, não devem ser feitas. Não se pune pum no elevador. Mas não se deve soltar pum no elevador, certo? Ou fazer a faxina das fossas nasais em público, especialmente largando o produto na limpeza nas bordas do mundo. Sigamos. Desculpem pelo parágrafo algo escatológico.

Ocorre que decisões judiciais não podem ser tomadas com base nessa, digamos, média dos consensos. Quando se vai apelar ao Estado para que tome uma decisão ou para que ele imponha um procedimento a alguém, é preciso apelar aos códigos.

AS LEIS
O Brasil dispõe de uma Lei de Acesso à Informação: a 12.527, de 2011. Ainda que pareça incrível, mas aconteceu, o governo Jair Bolsonaro tentou, por Medida Provisória, usar o coronavírus como pretexto para dificultar a aplicação da lei. Pesquisem a respeito. O troço era de tal sorte absurdo que nem errado chegava a ser. Por unanimidade, o Supremo tornou a medida sem efeito. Adiante.

Tal lei assegura acesso a todas as informações que sejam do interesse público. Há, claro, graus de sigilo de determinadas informações que garantem a proteção da própria sociedade. Leiam a lei. São as exceções. A regra, quando se trata de questão pública, deve atender ao princípio constitucional da publicidade e da transparência, consagrado no Artigo 37.

A lei 12.527 dedica um Artigo, o 31, às informações de caráter pessoal. Reproduzo o caput:
"O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais."

Informações com tais características, pois, dependem do consentimento dos indivíduos. Presidente ou não, Bolsonaro não pode ser obrigado, e não há lei para sustentar o contrário, a nos contar se tem chulé por causa do pé de atleta. Melhor ir se tratar. Quem tem direito de reclamar é Michelle. Não é problema nosso.

Mas o Artigo 31 traz um prudente Parágrafo 3º que prevê, sim, exceções. Lá está escrito que se dispensa o consentimento quando as informações pessoais protegidas por sigilo forem necessárias:
I - à prevenção e diagnóstico médico, quando a pessoa estiver física ou legalmente incapaz, e para utilização única e exclusivamente para o tratamento médico;
II - à realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral, previstos em lei, sendo vedada a identificação da pessoa a que as informações se referirem;
III - ao cumprimento de ordem judicial;
IV - à defesa de direitos humanos; ou
V - à proteção do interesse público e geral preponderante.

Noronha, com, digamos, manha jurídica, apela a um parecer do Conselho Federal de Medicina, que recita o que vai no Inciso I: a utilização de informação pessoal só poderia ser utilizada para tratamento médico. Bem, vivemos na República Federativa do Brasil, não na República Federativa do Conselho Federal de Medicina. Aliás, ainda bem! É aquela entidade que "libera, mas não recomenda" a cloroquina. Sabem como é... O presidente da República quer... O opróbrio chegará um dia. É questão de tempo. Voltemos.

Sim, é escancaradamente claro que a divulgação dos exames do presidente interessa "à proteção do interesse público e geral preponderante", conforme vai no Inciso V, e à "defesa de direitos humanos" (Inciso IV). E há, nunca nos esqueçamos, o Artigo 37.

A PANDEMIA, A CIÊNCIA, O MINISTÉRIO DA SAÚDE E BOLSONARO
O Brasil, a exemplo do mundo, vai viver a maior crise econômica da história em razão da pandemia do coronavírus. A esdrúxula decisão de Noronha vem a público no dia em que se divulgou o recorde de mortes em 24 horas: 751! Já se contam 9.897 cadáveres, com 145.328 infectados. E se sabe que tais números escondem uma brutal subnotificação. O país já é o segundo colocado no ranking diário de mortes. Só perde para os EUA.

Oficialmente, o Ministério da Saúde continua a admitir que o isolamento social é a única forma conhecida para evitar o caos no sistema de Saúde. O colapso já chegou em várias cidades. Em São Luís e Belém, há lockdown. No Rio, hesita-se em tomar tal medida, mas ela já se faz necessária. Nas favelas, corpos são carregados pelos moradores vielas abaixo.

A despeito do que dispõe a ciência, a despeito da orientação do Ministério da Saúde, a despeito da Organização Mundial da Saúde, a despeito do distanciamento social adotado por governadores e prefeitos, o presidente Jair Bolsonaro segue em pregação aberta contra tais medida, força a volta ao que chama "normalidade", sai por aí a provocar aglomerações, incentiva que as pessoas desrespeitem procedimentos mínimos para evitar a contaminação e transforma em bandeira política e ideológica a "abertura da economia". E, note-se, passam de duas dezenas as pessoas do seu entorno que se contaminaram. Deve ser a maior taxa por mil habitantes do planeta.

Se está ou esteve — o mais provável — contaminado, a informação extrapola em muito a sua privacidade. Há mais. A Constituição não permite que um chefe de Estado, no exercício do mandato, seja responsabilizado por atos anteriores ou estranhos a ele. Mas a Carta não dá licença para que cometa crimes no curso desse mandato. O Artigo 268 do Código Penal é claro. É crime "Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa".

SOFISMA
Doutor Noronha incorre num sofisma, numa ilusão de verdade, quando afirma:
"Relativizar tais direitos titularizados por detentores de cargos públicos no comando da administração pública em nome de suposta "tranquilidade da população" é presumir que as funções de administração são exercidas por figuras outras que não sujeitos de direitos igualmente inseridos no conceito de população a que se alude, fragilizando severamente o interesse público primário que se busca alcançar por meio do exercício das funções de Estado, a despeito do grau hierárquico das atividades desempenhadas pelo agente público."

Parece bom, mas estamos diante de uma falácia de pouca sofisticação. O presidente é que não pode, em razão das prerrogativas que o cargo lhe concede — aquelas de que não dispõem "os do povo" — incorrer em atos que a estes são vedados ou que, uma vez praticados, merecerão a devida sanção da lei.

IMPEDIDO
Com todas as vênias, chega a ser acintoso que Noronha não tenha se dado por impedido. Em entrevista ao site "Jota", ele praticamente convidou a Advocacia Geral União a recorrer ao STJ contra a decisão do TRF-3, sabendo que acabaria julgando o caso. Pior: afirmando que não o fazia, antecipou com todas as letras o conteúdo do seu despacho. Reproduzo a sua resposta:
"Essa decisão [sobre divulgar o exame de Bolsonaro] poderá chegar a mim com um pedido de suspensão de segurança, então eu vou permitir para não responder. Mas é o seguinte, eu não acho que eu, João Otávio, tenho que mostrar meu exame para todo mundo, eu até fiz, deu negativo. Mas vem cá, o presidente tem que dizer o que ele alimenta, se é (sangue) A+, B+, O-?"

O exemplo do doutor Noronha é cretino, embora a gente conheça a predileção do presidente por macarrão instantâneo e pão com leite condensado. Sabemos porque ele fez questão de divulgar. Ninguém cobrou que dissesse. Também é irrelevante a tipagem do seu sangue para a segurança dos brasileiros ou para uma política pública de Saúde. O exemplo não ilustra a questão, mas antecipa um voto.

Dispõe o Inciso III do Artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura que é vedado ao juiz:
"manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério."

Noronha fez ou não fez o que veda a lei?

VAGAS DO SUPREMO
Duas vagas se abrem no Supremo em breve: em novembro, deixa o tribunal o ministro Celso de Mello, quando faz 75 anos. Em julho de 2021, sai o ministro Marco Aurélio.

Sergio Moro chegou a ser dono de uma vaga. Caiu em desgraça. Bolsonaro já prometeu um nome "terrivelmente evangélico" para uma das cadeiras. André Mendonça era candidato dado como quase certo para o lugar de Mello, mas acaba de assumir a Justiça, e a segunda vaga não está assim tão distante.

Noronha não é "terrivelmente evangélico", mas parece que anda a ser "terrivelmente admirado" por Bolsonaro. Na posse de Mendonça, no dia 29 de abril, o presidente do STJ estava lá e foi alvo de um daqueles carinhos "homoerótico-héteros" que o presidente introduziu na linguagem política brasileira. Derramou-se o galante chefe do Executivo para o ministro do STJ:
"Confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência. Nós temos conversado com não muita persistência, mas, as poucas conversas que temos, o senhor ajuda a me moldar um pouco mais para as questões do Judiciário".

Huuummm... Então Noronha tem sido o Virgílio de Bolsonaro nos círculos infernais do direito... Não sei se o ministro deve se orgulhar do aprendizado do pupilo.

Fico a imaginar Donald Trump a marchar rumo (ou sobre?) a Suprema Corte, como fez Bolsonaro, ou, então, em discurso, a declarar que tem ouvido muitas orientações de Neil Gorsuch, que ele indicou para o tribunal... O escândalo estaria dado. No Brasil do Mito, "só não vale dançar homem com homem nem mulher com mulher" — afinal, seria ideologia de gênero. O resto vale. Inclusive apaixonar-se pelo presidente do STJ.

Mas dá para compreender, é claro!

ESTADÃO VAI RECORRER
O Estadão anunciou que vai recorrer. Tem de ser, em princípio, ao próprio STJ. Como deve ser malsucedido, aí caberá acionar o Supremo. A decisão primeira é do presidente. Dias Toffoli fica até setembro. Vai substituí-lo no comando do tribunal Luiz Fux, egresso do STJ de Noronha. Se também o presidente do STF mantiver o veto, caberá entrar com agravo para que seja o pleno do tribunal a decidir. Afinal, a questão é também constitucional.

Noronha, aliás, tenta matar a bola no peito, afirmando que a competência se esgota no STJ. Ao citar a lei de acesso à informação, escreve:
"Trata-se, assim, de questão que se reveste de natureza infraconstitucional e que consolida, portanto, a competência do STJ para apreciação do pleito suspensivo a ela atinente."

Não é ele quem decide isso, ora. É certo que estamos lidando com leis federais, mas resta evidente que está presente a questão constitucional.

Na quinta, Bolsonaro anunciou que faria um churrasco no Alvorada, previsto para este sábado, para 30 pessoas. Nesta sexta, dados os 751 mortos e as manifestações de repúdio, resolveu acrescentar ironia à indignidade e afirmou que reunirá três mil pessoas.

Não consegui apurar se Noronha foi convidado.

Sabem como é... Como cantou o grande Peninha, "quando a gente gosta, é claro que a gente cuida".